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Nada nos condiciona mais do que o medo. Ele é a grande arma usada desde sempre por quem nos deseja controlar, quer sejamos nós próprios, quer sejam os que nos estão próximos, quer sejam os que detêm o poder político, religioso, social e económico.

Ter medo é natural. Salva-nos a vida, nalgumas situações. É um instinto de preservação das espécies e tem o seu lugar na vida de cada um de nós. No entanto, a utilização desse medo que todos sentimos e a sua manipulação para através dele conseguir tirar dividendos próprios é o maior e mais prevalente perigo que se coloca agora e sempre.

A criação do medo é uma arte (ou uma ciência, melhor pensando), fácil de dominar, principalmente quando se tem um ascendente sobre a pessoa ou pessoas que se quer amedrontar. O poder é importante na equação do medo. Pode ser de vários tipos e revelar-se sob as mais variadas ameaças, veladas ou não. Para isso, é importante pensar-se quais as relações de poder dominantes na nossa sociedade ao longo dos tempos.

O poder que um pai exerce sobre um filho, nas suas escolhas, de amigos, de curso, de brinquedos, de conduta. O poder que uma igreja exerce sobre os seus crentes, igualmente na sua conduta e nas suas escolhas. O poder que um chefe exerce sobre os trabalhadores que lidera. O poder que um político exerce sobre a população. O poder que um membro de um casal exerce sobre o outro membro.

A influência pelo exemplo e respeito e a influência pelo receio e medo muitas vezes confundem-se aos olhos dos mais distraídos, mas não sobrevive o engano a um olhar mais atento. E aquilo que separa uma realidade da outra é um equilíbrio muitas vezes difícil de manter, não só porque é mais difícil manter uma conduta que dê o exemplo do que impor premissas diferentes das nossas ao outro, mas também porque é necessário que quem detenha maior poder numa relação tenha a formação ética e/ou moral para não abusar do mesmo em seu proveito.

Tudo isto a propósito de uma conversa que se fez a 5, na Feira Internacional de Cultura de Cascais, com Nuno Galopim, Jacinto Lucas Pires, João Afonso, Capicua e eu. A dado momento da conversa, a Capicua falou do medo e de como ele é eximiamente utilizado para controlar a população, principalmente nestes tempos conturbados economicamente. Mais precisamente, o medo de perder o emprego é acenado a todos como o grande temor que pode afligir qualquer um de nós. Como, através desse medo, se fazem calar as vozes que se poderiam levantar contra os abusos de poder, as políticas injustas, as acções de justiça que de justas têm pouco.

Esse medo de perder o emprego equivale ao medo de perder as posses materiais, o estilo de vida e o estatuto social que conferem um mínimo de conforto e dignidade numa sociedade cada vez mais desenhada para apenas cuidar dos que conseguem cuidar de si.

Assim, fica o receio maior, o de ficarmos sozinhos a lutar contra o resto do mundo para sair de uma pobreza que, mais do que uma condição passageira, passa a ser sentença de morte social.

Através dessa imagem colocada no nosso subconsciente se tem conseguido subverter as regras democráticas sem que se assista a uma sublevação popular. O caso grego pode bem ser o exemplo acabado (ou, em linguagem «técnica», tão querida do discurso tecnocrata, um case study) de como gerir o medo para conseguir impor mais e mais regras que beneficiam os interesses de poucos em detrimento dos interesses de muitos. Resta saber o que irá acontecer quando for retirado o último pedaço aos muitos que ficam assim sem mais nada a perder.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
26-7-2015