Pé na estrada

Notícias Magazine

Sento-me a pensar que, por via da profissão que escolhi,sou nómada. Faço do mundo a minha secretária e calcorro-o quando vou para o trabalho. A estrada, conheço-a bem e tornou- -se minha companheira. Às vezes, confidente. Aproveito, enquanto a percorro, para pensar, criar, escrever, matutar.

Sempre foi um pouco assim, para mim, mesmo antes de ser música: quando entro num carro ou num avião, calo-me. Fico a olhar, absorta, a paisagem que passa por mim. Eu sou parte passiva na viagem. Ela acontece-me. As paisagens passam por mim a correr, sem que eu possa participar nelas. Sequer tenho tempo de me perder nelas, nos seus detalhes. Apenas um todo que se vai desenrolando à minha frente, à medida que se anda.

No carro deixo que a viagem me aconteça, o que é o contrário do que faço quando saio dele e me largo na vida. Aí, sou eu quem tenta fazer acontecer. Por vezes (mais vezes do que gostaria de confessar), é mesmo a vida quem dita a viagem, mas gosto de acreditar que não me rendo sem luta. Vivo entre cá e lá, num «pingue-pongue» ao jeito de António Variações, que canta a inquietação de se querer sempre o contrário daquilo que se tem.

Quando se passa muito tempo fora de casa, suspira-se por ela nos infindáveis quartos de hotel que se vão sucedendo. Quando se passa muito tempo em casa, as saudades da estrada, do cheiro da madeira do palco, da luz desmaiada dos camarins, da adrenalina suada do pós-concerto, que nos faz ficar acordados horas a fio na cama do hotel, a olhar o tecto, vazios de tudo o que entregámos a quem nos foi ver – as saudades da estrada, como dizia, gritam-nos ao ouvido.

Mas há um facto ao qual não posso escapar – sou nómada. Dentro das malas cabe apenas o essencial e fazê-las com regularidade lembra-me aquilo que é importante trazer comigo e aquilo que não importa deixar para trás.

É um exercício que deveríamos fazer nas nossas vidas com regularidade. Pensar que apenas temos duas malas de viagem e o que escolheríamos lá colocar de entre tudo aquilo que possuímos. Melhor ainda se fizéssemos o mesmo exercício, mas, ao invés de lá colocarmos coisas materiais, colocaríamos coisas imateriais.

Saber que bagagem emocional conseguimos deixar para trás e quais as memórias e pessoas que são imprescindíveis para que possamos continuar a fazer a nossa viagem parece-me mais do que um exercício de curiosidade, uma necessidade para o equilíbrio da própria vida.

Bagagens muito pesadas e em grande número atrasam a viagem e podem torná-la impraticável. Ora, é a viagem que me permite ser feliz, ela é um veículo que me transporta aonde preciso de estar para fazer aquilo que gosto e aquilo que me realiza. Pode ser nas paragens que tudo acontece, mas é a andar que alcanço o que quero.

O que me leva a pensar que somos todos nómadas, na verdade. Ou deveríamos ser, pelo menos. Mesmo que a nossa vida seja feita à secretária, sempre a mesma secretária, no mesmo sítio, com as mesmas pessoas. Isso, na verdade, não interessa, quando nos deixamos perder na imensidão da nossa mente e nos deixamos ir onde ela nos precisa de levar. Para que não nos percamos na vida, temos de nos deitar a perder nela. Viajá-la, destemidamente, como se fôssemos um daqueles heróis aventureiros dos filmes de Sábado à tarde.

Não é a secretária que nos impede de sermos heróis, é o facto de nos deixarmos convencer de que estarmos parados é mais importante do que fazermos a viagem a que estamos destinados. Se a última paragem é a morte, então todas as paragens são como uma pequena morte. A vida é movimento e quem a quer viver será nómada. Pé na estrada, que se faz tarde.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
10-5-2015