O árbitro que dá pulos de contentamento

Notícias Magazine

Aproveito estar a escrever na NOTÍCIAS MAGAZINE e não em A Bola ou no Record, onde nunca teria coragem de confessar que já me apanhei a mudar de clube durante um jogo. O futebol olhado é um prazer. Se não o for, para que serve? A jogar fui um falhado. No campo dos Coqueiros, Luanda, numa final do meu Liceu Salvador Correia contra a Escola Industrial, guarda-redes, deixei bater a bola no pelado da grande área e vi-a fazer um ultrajante chapéu até ao golo que eu sabia estar a ser visto por meu pai e todo o bairro. Fiquei um futebolista falhado, condição que partilho com quase todo o estádio. Nós, os da bancada, tivemos algures no passado um desses momentos de antiepifania em que, por não termos encontrado no campo a vocação e o destino, nos decidimos sentar.

Foi assim, em bancada ou sofá, que eu tirei todo o partido das bolas que se amansavam sempre aos pés de Zidane – vinda violenta ou inesperada de meio metro. Foi assim, admirando, simplesmente embasbacado como cabe aos fiéis perante os deuses. Pirlo, Rui Costa, Cristiano, Iniesta ou Messi deram-me idênticos deslumbramentos, sem que o têxtil que envergavam me impedisse o prazer. Sorte a minha por, apesar de eu ter um clube, manter com ele um negócio: ele sabe que em situações comuns tem preferência, mas caso apareçam fogachos de génio não há emblema que me obrigue à fidelidade. Leal com o clube, fiel ao futebol. A lealdade é um negócio entre iguais, a fidelidade não é negócio nenhum, é bendita submissão momentânea, do tipo comum que sou, à prima-dona de chuteiras que acabou de me encantar.
Sei que esta minha religião não é de massas ou, pelo menos, não é muito confessada. Daí eu ter rejubilado, nesta semana, ao saber de um correligionário longínquo. E, vejam lá, um árbitro! Dirige jogos da Premier League, o campeonato maior inglês, e já foi árbitro internacional. E, sobretudo, é um entusiasta do futebol, coisa assinalável porque, segundo a opinião pública, ele deveria estar obrigado à contenção. Em campo e escrutinado pelos mais enviesados dos olheiros, o árbitro inglês Mike Dean é um amante de futebol que dá pulos.
Na segunda-feira passada, em Londres, o Tottenham recebeu o Aston Villa e marcou cedo. Celebraram os que ganhavam, esmoreciam os que perdiam – mas não foram eles os grandes atores do momento do golo. A relva rasgou-se pelo correr dum homem, fazendo pirueta de avioneta em festival aéreo, guinando e apontando, em braçadas de contentamento, o recomeço do jogo. Seria alguém da equipa do Tottenham com camisola equivocada? Um invasor de campo eufórico? O Super-Homem? Não, era Mike Dean, o árbitro que gosta de mostrar que gosta.

As imagens correram mundo e espicaçaram a curiosidade por outras manifestações insólitas. E descobriu-se, noutro jogo mais antigo do Tottenham, dessa vez contra o Arsenal, igual exuberância. O guarda-redes arsenalista sofria um chapéu e toda a gente estava suspensa no voar da bola. Agora, porque Mike Dean está sob observação atenta, topou-se que ele, árbitro, estava fora-da-grande-área, expectante como todos, e até mais: com os braços como que empurrava de longe a bola para o golo… Seria caso de um adepto do Tottenham investido erradamente na condição de árbitro? Tudo o contrário do que eu, em cima, digo que deve ser um amante do futebol, só rendido à arte, não ao clube? Pois tenho o prazer de anunciar que o meu Mike Dean é mesmo dos meus. Gosta de futebol e leva o gosto para a relva. A análise a que ele foi sujeito levou a vídeos de jogos (apareceram agora, que ele é vedeta), com e sem o Tottenham, em que ele se assume amante do jogo. Por exemplo, se acompanha uma jogada e um mau passe a estraga, Mike Dean para e fica a abanar a cabeça! Quase se esquece de que o jogo continua… No dia em que ele mostrar o cartão amarelo a um jogador por ser desajeitado, Mike Dean passa a ser meu herói.

[Publicado originalmente na edição de 8 de novembro de 2015]