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Conto como me contaram e não sou de revelar fontes. Em 1950, chegou ao meu bairro um casal negro americano. Eles é que diziam que eram negros, mas nós lá em São Paulo, em Luanda, éramos especialistas em tonalidades da pele e bem sabíamos que eles eram mulatos. Ele, apesar de muito preto. Tinha o cabelo puxado em cascata, liso ondulado, que caía abruptamente na nuca. Haveríamos de os julgar catanhós, como se chamava aos cabo-verdianos, não fosse a maneira engraçada como ele falava, tirando cada espinho dos erres. Ele vestia de veludo todas as palavras. Ela linda, muito apaixonada, demasiado. «Acho que ele é divorciado…», diziam a minha mãe e a minha tia antes mesmo de se interrogarem o que fazia um casal americano no meu bairro.
Eles ficaram uma semana no hotel Majestic, na rua central. Acabado de inaugurar, os quartos tinham varanda no primeiro andar em ferradura, debruçada sobre o bar. O Batoque, um dentista brasileiro («protésico dentário», emendava ele) que arranhava inglês, apanhou os recém-chegados a dizer que havia um motel assim em Palm Springs. «Em quê?!», foi a resposta que ele sempre levou quando trouxe a novidade ao Bar América. Mas o bairro estava impressionado, não apareciam por lá negros, nem mesmo assimilados, com o único Buick descapotável que nesse ano a Casa Americana tinha vendido. Depois da semana no Majestic, eles foram viver para uma vivenda, no quarteirão abaixo, largo de Ambaca.
O quintal tinha goiabeiras, pitangueiras e fruta-pinha. O Sr. Martins camionista, que fez trombas quando viu que ia ter vizinhos escuros, amoleceu quando viu o Buick e desfez-se todo quando o americano, com sorriso de piano, lhe perguntou que frutos eram. O Sr. Martins abria as vogais para falar estrangeiro e dava mais do que uma versão, «frutá-pinhá, sape-sape…» – e foi esta, aberta, que permitiu saber mais do novo vizinho. Da fruta parecer algodão chegou-se a ele ser do Alabama. Isso o bairro sabia o que era, havia aqueles vestidos de lençóis, Ku-Klux-Klan, que entravam nos noticiários do mundo antes do filme no Cine-Colonial, que dava as traseiras para a vivenda dos americanos.
Depois do Buick, o que mais impressionou o bairro foi a chegada, no camião do Sr. Martins, do piano de cauda do Grande Hotel (já então em decadência), da Rua dos Mercadores, na Baixa. Ninguém tinha visto um ao vivo e, se vira, não o dizia porque teria sido no Copacabana, um cabaré de má fama. Na tarde do sábado seguinte, apareceu o pastor Augusto Klebsattel e a mulher, Elisa, da missão evangélica. «Eles são protestantes…», seria o escândalo não fosse ele ser abafado por as portas da vivenda terem ficado abertas e se ter ouvido uma música cantada pelo americano. «Foi esta!», disse-me muitos anos depois a minha mãe, apontando uma faixa de um vinil da Capitol Records: Straighten Up and Fly Right.
Um dia, os americanos foram embora. Meses depois, um primo meu apareceu com um recorte de jornal: um famoso cantor negro e a mulher tinham sido importunados pelos vizinhos por terem comprado uma casa cara (65 mil dólares), num bairro de brancos em Hollywood. Havia foto e pareciam os americanos do Largo de Ambaca! Foi-se ao Sr. Martins confirmar, ele ficara com o Buick. «Naa….», varreu ele, quando viu o nome, que ninguém conhecia em Luanda, Nat King Cole. «Não era ele, ele chamava-se Nathaniel, com h e tudo…» E foi assim que o meu bairro ficou sem uma lenda.
Depois, Nat King Cole foi-se tornando famoso (Too Young, Mona Lisa, Unforgettable…) até entre nós. E em 1959 cantou-nos em português: As Suas Mãos, Ninguém me Ama… Aí, voltaram as dúvidas ao meu bairro: «Foi aqui que ele aprendeu.» E, há exatos cinquenta anos, o meu bairro chorava Não Tenho Lágrimas, ao saber da sua morte. O meu bairro já não tinha dúvidas, Nat King Cole tinha vivido no largo de Ambaca para saber dizer: «Querro chorarr e não tenho lágrrimas…» Mas sempre com veludo.
[Publicado originalmente na edição de 22 de fevereiro de 2015]