Nunca percebi bem porque insistimos em fazer julgamentos de valor em relação às decisões que são tomadas pelos outros e que somente a eles afectam. A forma como alguém escolhe viver não deveria ser fonte de ódio, mexericos, aprovação ou desaprovação.
O que realmente deveria interessar são os actos que cada um de nós pratica em relação ao bem comum. Se o que fazemos beneficia ou prejudica o próximo: isso sim, deveria ser alvo do maior escrutínio e atenção. Nunca o sexo da pessoa com quem se escolhe partilhar a vida, a forma como essa partilha é feita ou como deixa de ser feita, o género ou a cor da pele de alguém ou os erros que se possam cometer no trajecto de uma vida que muitas vezes nos coloca obstáculos tão difíceis de compreender e ultrapassar de forma virtuosa.
A verdade é que parece, nos últimos anos, que estamos a tornar-nos uma sociedade profundamente moralista, mas muito pouco virtuosa. Quero com isto dizer que facilmente julgamos o outro na praça pública, mas muito dificilmente nos podemos orgulhar daquilo que em conjunto temos conseguido alcançar e construir.
O ódio e a intolerância são doenças altamente contagiosas e quando nos obrigam a tomar nota de tudo quanto os outros fazem nas suas vidas privadas, mas nos ilibam de utilizar esse tempo precioso a trabalhar para o bem comum (seja a respeitar todos os seres vivos e a tratá-los de forma digna, seja a perseverar para que todos tenham acesso às mínimas condições de vida, sendo que isso obriga à distribuição mais justa de bens materiais e imateriais e à partilha dos mesmos), então percebemos que, apesar de parecerem abundar nos corações de muitos, não ajudam a resolver nada, contribuindo, pelo contrário, para a perpetuação do sofrimento.
Que ninguém se engane: nunca, enquanto houver sofrimento no mundo (e quando falo de sofrimento não me refiro apenas àquele que sentem os seres humanos), será plena a felicidade que conseguimos alcançar nas nossas vidas privadas.
A forma como os outros alcançam a felicidade não nos deve interessar. O que nos deve interessar é que todos possam ser felizes à sua maneira. O que nos incomoda com quem o nosso próximo se deita? De que forma é que a sua vida sexual, a sua cor ou o seu género contribuem para as nossas vidas? De forma nenhuma e por isso devem ser deixados de lado quando olhamos para as suas vidas.
A forma como os outros alcançam a felicidade não nos deve interessar. O que nos deve interessar é que todos possam ser felizes à sua maneira. O que nos incomoda com quem o nosso próximo se deita? De que forma é que a sua vida sexual, a sua cor ou o seu género contribuem para as nossas vidas? De forma nenhuma e por isso devem ser deixados de lado quando olhamos para as suas vidas.
O que me interessa saber é se aquela pessoa ajuda o seu próximo caso o veja aflito ou se passa ao lado e finge nem ver a sua aflição. Isso sim, é deplorável. Mas é muito mais fácil arrumar as virtudes em caixinhas que se podem identificar à primeira vista do que procurar a virtude que se esconde no íntimo de cada um. Para isso é preciso que saiamos da nossa bolha e que vamos ao encontro do outro.
Este movimento ao encontro do outro afigura-se como a fobia do século XXI. Tudo está feito para que possamos viver sem precisar de ninguém. Deixámo-nos isolar e deixámo-nos, sobretudo, convencer de que estarmos isolados é uma fortaleza. Não é. É uma fraqueza enorme da qual se aproveitam os que pretendem uma sociedade dirigida por interesses obscuros.
Por isso, por estarmos tão afastados uns dos outros, não hesitamos em julgar-nos por aquilo que conseguimos avistar, ali, de longe, míopes por opção. Miopia é igual a estigmatismo, não para os oftalmologistas, mas para a minha «liberdade poética». A miopia cria estigma: as tais caixinhas onde arrumamos os outros depois de uma análise superficial às suas vidas.
Não nos admiremos pois que, ao transformarmos os outros em figuras-tipo, acabemos nós por sermos transformados igualmente em figuras redundantes, pouco complexas, personagens de novelas de cordel, figuras sem corpo nem densidade e, ainda por cima, míopes de coração.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
24-5-2015