Ela podia ter ficado em casa. E não ficou, nunca ficou. Não foi dona de casa, quando esse era o destino certo para a grande maioria das mulheres da sua geração. Não foi apenas primeira dama, quando esse era o destino mais óbvio para quem estava casada com um homem tão forte e tão marcante para a vida portuguesa como Mário Soares. Não foi reformada, quando esse era o destino merecido para quem trabalhou a vida toda, ou seria melhor dizer esfalfou, em vários ofícios, desde os tempos de faculdade.
Maria de Jesus Barroso não ficou em casa. Até à última semana de vida, trabalhou sempre. Sempre. Toda a gente que com ela se cruzara sabia que só razões de força maior a parariam. A morte. A que ela esperava, mulher pragmática – «estou à espera da chamada», disse na entrevista que publicámos na Notícias Magazine em 2012. A morte que ela temia, apenas e só por causa da hipótese de não ter mais tempo para fazer o que tinha de fazer – «penso que não me resta muito tempo e que ainda queria fazer muitas coisas. Vamos ver se consigo…»
Talvez não a tenhamos homenageado suficiente, esta mulher forte e seca, que recusava chorar em público e nunca se deixou vergar, nem pela PIDE nem pelas agruras da vida. Talvez não a tenhamos, até, estudado suficientemente. Se os povos se constroem através de histórias, de narrativas que fazem sentido e que nos ligam, a da vida desta mulher tinha dado vários filmes. Se a aprendizagem – e a evolução – se faz com exemplos, o dela devia ser maior. Esta foi uma mulher que encontrou um amor, o que, na altura em que isso lhe aconteceu, era tudo o que uma menina casadoira podia desejar. Um jovem interessante e de posses, que lhe daria um futuro, certamente. Mas não, não era isso que ela queria. Já não era. Antes de conhecer Mário Soares num corredor da Universidade, já o decidira: fora para o teatro, entrara para a faculdade, estudava e trabalhava ao mesmo tempo, tinha uma vida. Não estava à espera de nada.
Mário Soares foi, de certa forma, mais um dos projetos de Maria Barroso. Não foi apenas um projeto sentimental, embora muito passasse por aí. O deles foi um amor a sério, dos que nos revolvem os dias, e as noites, como ela própria confessava nas cartas que trocaram e que vieram a tornar-se públicas. Um sonho, portanto. Um amor a quem respeitar, além de amar, com a cabeça além do coração – desses, então, mais raros ainda, são feitas muitas histórias de livros e de filmes.
Mas, mais do que isso, talvez Mário Soares fosse, também, uma das formas que Maria Barroso tinha de intervir no mundo. Disse, numa entrevista ao DNA, em 2004 que gostara dele também pelo que defendia. «Sim, a coragem dele, e sobretudo o interesse dele, as intervenções dele no sentido de participar na modificação do regime, que era injusto e que nos dominou durante tantos anos.»
Numa das suas últimas entrevistas, ao jornal i, Maria Barroso disse como queria ser recordada: «Uma cidadã modesta mas amante da liberdade, da solidariedade e do amor. A minha palavra preferida, sem qualquer dúvida…» Obviamente não estava a falar deste amor…, ou antes, obviamente estava a falar deste amor. Mas também de todos os amores. Da família. E do amor à vida também, às causas, ao mundo. Esse amor é o que faz brilhar os olhos como os dela brilhavam – o que faz mover o mundo como ela movia.
[Publicado originalmente na edição de 12 de julho de 2015]