Creio que já o havia confessado publicamente , mas volto a dizê-lo: um dos meus maiores desgostos é não ter talento para desenhar. Aliás, trabalhos manuais que requerem perícia e delicadeza não são, de todo, o meu forte.
É um «trauma» que vem desde as aulas de Educação Visual, uma tortura que me obrigava a enfrentar os meus piores medos, nomeadamente, o de não conseguir fazer um círculo perfeito com o compasso, porque ele me escorregava da mão, ou porque, simplesmente, o mecanismo da coisa não funcionava nas minhas mãos nervosas, o de não conseguir desenhar uma linha recta, o de esborratar tudo o que fosse desenhado a lápis ou qualquer tarefa que implicasse desenhar algo de forma literal. Se queria representar um cavalo, saía-me um gatafunho mais parecido com um gato ou um cão.
O único momento de glória que me lembro de ter tido numa dessas aulas, foi na apresentação de um trabalho que consistia em desenharmos o nosso auto-retrato e fazermos uma colagem por cima a partir de páginas de revistas. A maior parte dos meus colegas procurou «colorir-se» da forma mais aproximada da realidade possível, ou seja, procuraram os recortes com as cores mais aproximadas da sua pele, dos seus cabelos, dos seus olhos. Eu, não. Fiz precisamente o contrário. E a professora gabou-me a criatividade e a capacidade de pensar «fora da caixa», que era, veio-se a saber então, precisamente o que ela pretendia.
Findo o meu dia de glória na aula de Educação Visual, a única alegria que me restava eram os livros de colorir. Gostava de pintar os livros que os meus pais me compravam. Canetas de feltro, lápis de cor, lápis de cera, o que quer que fosse. Acalmava-me as ânsias e estimulava-me a imaginação, ao mesmo tempo. Sem ter de me preocupar com a beleza do desenho e a perfeição das linhas, que já estavam desenhadas, apenas tinha de me preocupar em dar cor àquele mundo cinzento.
Ainda hoje o faria de bom grado, na verdade. O que sempre me pareceu uma excentricidade minha, afinal, é um desejo partilhado por muitos mais do que pudesse imaginar. Soube-o ao ler uma notícia que dava conta do sucesso de vendas dos livros de colorir para adultos. Aparentemente, no Brasil e em França, alguns dos países citados na dita notícia, o volume de vendas destes livros supera o dos livros de culinária, o que, mesmo não percebendo grande coisa acerca do mundo editorial dos livros, me parece ser feito de grande monta.
Soubesse eu que havia tantos «inadaptados» e inaptos das artes ilustrativas, plásticas e gráficas, não teria sofrido tanto nas malfadadas aulas para as quais me arrastava, contrariada. Mas nunca é tarde para nos sentirmos acompanhados nas pequenas misérias e infelicidades que compõem a nossa realidade e imagino o mundo cheio de gente como eu. Gente que sempre quis colorir outros mundos que não o seu, mas sem ter de passar pelo suplício de tentar desenhar uma linha direita a régua, falhando redondamente (passe a piada geométrica).
Certo: o traço não é nosso. Tão-pouco o esboço do mundo, que já vem desenhado. Mas será que não é assim também com este mundo físico em que vivemos? É-nos apresentado já sob a forma de esboço, com o traço definido, cabendo-nos a nós enchê-lo das cores que escolhemos. Se se pensar desta forma, então isto de se gostar de colorir livros de desenhos em idade adulta não parece algo tão excêntrico ou inapropriado. Apenas uma continuação natural daquela que é a nossa função nas páginas do nosso livro e que a criança em nós logo intui: dar cor ao mundo, para que não se quede cinzento, vazio, cheio de linhas vácuas.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[Publicado originalmente na edição de 5 de abril de 2015]