Precisávamos mesmo de mais uma Cinderela? A resposta é sim, se for personificada por Lily James, a adorável Lady MacClare de Downton Abbey. Falámos com ela em Berlim sobre a megaprodução da Disney que se estreia já na quinta-feira.
Manhã cedo em Berlim. A atriz britânica que todos querem ver chega a uma sumptuosa sala de banquetes do Hotel Ritz. Vem com a assistente da Disney e traz logo um sorriso que acentua a pinta de rapariga atraente. «Lily», diz ao mesmo tempo que nos estende a mão. Lily James, a Lady MacClare de Downton Abbey, está agora em missão Cinderela. Foi ela a escolhida para Gata Borralheira nesta versão de Kenneth Branagh sobre a menina órfã que é preferida pelo príncipe. A Disney quis uma Cinderela de rosto fresco e sotaque britânico. Mais importante: quis uma Cinderela com uma pureza imaculada e um sorriso real. Aos 25 anos esse sorriso é legítimo.
No Festival de Cinema de Berlim, no mês passado, aquele que é considerado o melhor filme da Walt Disney dos últimos anos em imagem real para o chamado público infantil e familiar foi bastante aplaudido. Uma obra em estado de graça que volta a captar um certo espírito mágico da Disney e recupera ainda uma maneira de encenar clássicos, com uma benevolência e um rigor que se pensavam perdidos. É um alívio não haver aquela propensão em fazer à moderno e sente-se que o espírito do verdadeiro conto de fadas que continua a encantar gerações é respeitado e até celebrado.
A história, claro, não muda: Cinderela fica sem pai e é obrigada a receber em sua casa a madrasta e as duas irmãs invejosas. Claro que há o baile, claro que há a fada madrinha e claro que há um sapatinho de cristal. Sobre isso da lenda do príncipe encantado e o efeito que a promessa tem sobre meninas de todo o mundo ao longo de gerações e gerações, a atriz inglesa não acha nocivo. «Essa mensagem depende sempre da maneira como ensinamos as crianças a olhar para os contos de fadas. Quando era criança lembro-me de achar que o príncipe encantado acabaria por aparecer – faz parte da natureza da história e sonho de quereremos sempre mais e de explorar novas coisas. Para mim, o mito da Cinderela tem que ver com aquela coisa de não ficarmos presas ao mesmo lugar, de querer explorar o mundo. Ao mesmo tempo, é um conto que nos contamina com romance, beleza e magia. Não consigo perceber como isso pode ser algo negativo. Quisemos muito que esta nossa versão não se centrasse no príncipe…Não é por acaso que quando eles se conhecem não sabem nada um do outro… Aqui é ela quem decide sair de casa!»
E como em qualquer história da Cinderela, o sapato deixado nas escadas após o baile ganha um peso considerável. A Disney apostou forte no design do calçado mágico e encomendou à Swarovski um modelo em joias de cristal. Um par que é filmado para reluzir mas que na verdade não foi feito para Lily poder caminhar com eles calçados: «Sinto que vou estragar as ilusões de muitos, mas aqueles sapatos, na verdade, não podiam ser calçados. O pobre do príncipe ainda anda por lá à procura dos pés que sirvam… A sério, sapatos de cristais Swarovski são pequenos de mais, apesar de me terem feito uma réplica para algumas sequências. Se alguém os calcasse partiam-se logo! Devo dizer que quando pegava neles ficava assim um pouco ansiosa, com medo de os deixar cair.» Mas menos prático que os sapatos era o vestido: a roupa que a fada madrinha arranja para a Cinderela ir ao baile obrigava a atriz a perder cerca de quarenta minutos para ir à casa de banho. «Um pesadelo.»
E os ratos, Lily? Como foi «contracenar» com os simpáticos ratos que não existem (são efeitos visuais) e que confortam Cinderela na sua solidão? «Foi muito bizarro. O assistente de realização tentava que eu imaginasse os ratinhos e, ao mesmo tempo, ia dizendo uns palavrões… O pessoal do som também ajudava e imitava os barulhinhos dos ratos. Era cómico! Por outro lado foi complicado. Queria que ela estivesse a falar com eles como se estivesse a falar com pessoas…mas torna-se difícil quando não lá nada ou, por vezes, apenas uns bonecos pequenos.» Da rodagem diz que vai recordar sobretudo as lições que recebeu de Helena Bonham Carter, uma fada madrinha que parece saída dos filmes de Tim Burton (crueldade do destino, logo a seguir a esta rodagem foi anunciado o divórcio da atriz e do realizador…). «A Helena é um sonho. Foi muito divertido contracenar com ela. Estávamos sempre a rir: ela ensinou-me a importância de preservarmos o nosso sentido de humor, sobretudo em virtude de isto tudo no cinema ser tão tolo… E é verdade: aquele vestido com que ela surge obrigava a estar um tipo literalmente debaixo da sua saia para criar um certo efeito luminoso. Enfim, como se estivesse a ser acesa. A Helena dizia que todos os dias havia um homem que se metia debaixo dela para a “ligar”!»
Depois de Cinderela, Lily será uma senhora vitoriana em Pride and Prejudice and Zombies (Orgulho e Preconceito e Zombies), de Burr Steers, a prova de que Jane Austen e mortos-vivos podem coabitar com humor. A partir deste momento, tudo está feito para esta simpática britânica ser levada ao colo rumo ao estrelato de Hollywood. «Para já estou a desfrutar de toda esta atenção, está a ser ótimo. Ainda ontem, na passadeira vermelha [Berlinale] estava a desfilar ao lado da Cate Blanchett e da Helena Bonham Carter. Tão surreal! Ao mesmo tempo, divirto-me.» Surreal se pensarmos que não há muito tempo a atriz de 25 anos ainda estudava na Guildhall School of Music and Drama, uma das mais prestigiadas escolas de interpretação do Reino Unido, e que o seu anterior filme era um drama independente obscuro chamado Broken (inédito em Portugal), em que tinha um pequeno papel ao lado de Tim Roth.
Sobre Downton Abbey, julga-se que a sua personagem não tem ordem de regresso, mas é a própria quem concorda que a melhor ficção vai toda parar ao formato televisivo: «Meu Deus, até o Woody Allen veio para a televisão! Se voltarem a chamar-me para séries, por favor que não seja de época. Quero fazer uma personagem contemporânea!» Por agora, milhões de crianças de todo o mundo vão associar o seu rosto a uma das figuras mais icónicas dos contos de fadas.
KENNETH BRANAGH
O HOMEM DE SHAKESPEARE ATRÁS DAS CÂMARAS
Décadas depois, muitos ainda olham para Kenneth Branagh como o cineasta que melhor adaptou Shakespeare nos últimos anos. Como Vos Agradar (2009), Difícil Renúncia (2000), Hamlet (1996), Muito Barulho por Nada (1993) e Henrique V (1989) estão aí como património quase inabalável, mas há um outro Branagh cineasta. Aquele que quer fazer espetáculos de grande escala. O Kenneth Branagh de Hollywood, capaz de adaptar Mary Shelley em Frankenstein de Mary Shelley (1994) ou tentar dignificar o mundo dos super-heróis com o primeiro Thor (2011). Agora, acerta em cheio e encontra o equilíbrio do rigor shakespeariano com a espuma colorida do grande espetáculo de fantasia com Cinderela. Lily James foi uma aposta pessoal. A Walt Disney deu-lhe carta branca.