Diário de Bordo: São Paulo

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O festival «As Margens dos Mares» pretendia ser uma colaboração artística entre vários países da lusofonia e iria ter lugar no início de Maio, em São Paulo. A primeira vez que ouvi falar acerca do projecto e do interesse dos seus mentores em ter-me como representante de Portugal fiquei muito feliz. Não só porque a direcção artística estava a cargo de um nome muito importante do jazz americano, Lee Ritenour, mas também porque sou admiradora do trabalho dos artistas que estavam convidados, que incluíam nomes como Sara Tavares, Mayra Andrade, Ceo, Ivan Lins, Stewart Sukuma e Manecas Costa.

A banda que nos iria acompanhar também era composta por alguns dos melhores músicos brasileiros e americanos: John Beasley, Kiko Freitas, Paulinho da Costa, entre outros. Tudo isto aliado ao facto de irmos passar uma semana de residência artística em São Paulo, uma cidade que já me havia acolhido com os Deolinda de forma inesquecível. Por isso, quando apanhei o avião para o Brasil, sentia um misto de expectativa e alegria pela oportunidade única que me tinha sido dada.

Assim que cheguei, aproveitei para descansar um pouco no hotel, para que a voz pudesse começar a funcionar adequadamente para os ensaios que estavam marcados para aquela tarde. O plano seria passar as músicas que iria cantar e o dueto que estava planeado com a Sara Tavares e Paulinho da Costa. Desde os primeiros minutos de ensaio pude perceber que ali se iam construir muitos momentos intensos e importantes, mercê do virtuosismo dos músicos que nos acompanhavam e da escolha inspirada de artistas que se complementavam na perfeição e que souberam construir uma linguagem comum a partir das linguagens musicais de cada país representado.

No dia seguinte, era tempo de ensaiar com Ivan Lins. Depois de uma viagem de carro longa (em São Paulo, as viagens são quase sempre longas, mesmo quando as distâncias são curtas: o trânsito assim o obriga), em que conversámos acerca de música, claro está, lançámo-nos a Velas Içadas.

Numa das pausas, num pequeno jardim anexo ao estúdio de ensaios, Stewart Sukuma e Manecas Costa lançaram-se numa sessão de improviso que incluiu um instrumento de percussão típico da Guiné-Bissau constituído por meia cabaça virada para baixo e pousada sobre uma bacia com água.

No terceiro dia, os ensaios já se fizeram no palco do Sesc Pinheiros. Afinou-se o som e as luzes, as posições e as canções, claro. O primeiro dia de concertos era o Dia de Portugal. Comecei eu, com uma versão de voz e piano de Estrela da Tarde. Um feito que impressionou o percussionista Marcus César, que me passou a apelidar de «corajosa» por, segundo ele, «ter começado um festival daquela envergadura e com aquelas características acompanhada apenas pelo piano e cantando um tema tão intenso e denso». Pelo peso das palmas que recebemos no final, o público pareceu gostar da minha apresentação e da apresentação da Sara Tavares.

No sábado, foi a vez dos cantores africanos apresentarem a sua arte, feita de ritmo, dança e sensualidade. E, no domingo, cabia ao Brasil apresentar a sua versão da lusofonia. O festival acabou com os músicos juntos em palco, numa improvisação que deu espaço a todos para mostrarem de que notas são feitos e que pôs a plateia a dançar.

Foi uma semana intensa, por vezes cansativa, mas no final a certeza que ficou é esta: de entre toda a riqueza cultural da lusofonia, a maior de todas é o facto de sentirmos todos uma mesma pulsação, mesmo que depois os ritmos que daí advenham sejam tão distintos e diversos.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
16-5-2015