– [silêncio]
– Naaaa, eu já te conheço. Hoje não…
– Hmm?! O que é que isso quer dizer? Estás a falar do quê? Hoje não, o quê?
– Já te conheço. Já sei o que é que quer dizer esse silêncio. Não vou cair nessa. Desta vez não vou fazer isso.
– Mas qual silêncio? Não vais fazer o quê?
– Estás aí calada há uns minutos. Há um bom pedaço que não dizes nada e estás à espera que eu pergunte o que é que se passa. E que pergunte se ficaste chateada com o que eu disse há bocado. E depois vais dizer que não e continuas calada. E eu insisto. E lá vais deixar escapar qualquer coisa mas pouco. E vais continuar sem abrir a boca depois. Até que eu me vou passar e vou querer saber o que é que estás a pensar. E então tu vais deitar tudo cá para fora. Eu vou contrapor e dizer que não, que não é bem assim e que estás a ver a coisa mal. E tu corriges-me e dizes que tu é que sabes como é que deves ver a coisa e que eu não mando na tua cabeça. Nessa altura ainda não vamos estar a levantar a voz. Depois eu digo que não estou a mandar na tua cabeça, estou só a ver o que estás a fazer. E é então que tu desatas aos gritos. E eu vou gritar também. Mais alto do que tu, porque tenho a voz mais grossa. E depois amuas. E eu fico calado. E no fim peço-te desculpa. E tu ficas outra vez calada, mais tempo, e ainda mais amuada e ressentida e triste comigo. Vai ser assim o resto do dia e só te passa a telha amanhã.
– Bem, já fizeste o filme todo.
– Não é um filme. É um documentário. São muitos anos.
– Ah, ironia. Ainda por cima estás com piada. É um documentário humorístico? Diz-me lá, gostava de me rir também. Estás aí muito divertido a prever o futuro, gostava de achar piada a isso, como tu.
– Estou só a tentar evitar que aconteça o costume. Não me apetece discutir. Acabamos sempre da mesma maneira.
– Sim, já sei. Com a minha telha. Acaba com a minha telha, que só me passa amanhã, não foi o que tu disseste? E entretanto ainda fico amuada. É muito simpático da tua parte veres-me assim.
– Não comeces. Não quero mesmo entrar por aí. Não é bom para nós, esta dinâmica.
– Não queres entrar por aí? Mas qual dinâmica? Do que é que tu estás a falar? E se eu quiser começar já a gritar, sem passar pelas outras fases todas, pode ser? Ou vou estragar a tua longa-metragem e a coisa já não bate certo para ti? Posso alterar a ordem? Deixas?
– Olha, estás chateada comigo com a conversa de há pouco. Já percebi.
– Pois estou! Nisso tens razão.
– Sim, eu sei. O teu silêncio queria dizer isso. E ainda por cima hoje tiveste um dia mau e irritaste-te no trabalho e ainda tens uma reunião importante para preparar para amanhã e por isso estás preocupada. Eu percebo. E não quero contribuir para te enervares mais.
– Se soubesses como o teu paternalismo me está a complicar os nervos… Olha lá, agora és meu psicólogo ou quê? Ou meu secretário, a falar das minhas reuniões?
– Tem calma. . Acho que devíamos não falar sobre isso agora. Deixa que eu arrumo a cozinha para poderes estar livre para fazer o que tens de fazer.
– E se me apetecer arrumar a cozinha, posso? E se eu quiser partir um prato? Ou dois. Só para deixar escapar alguma raiva, pode ser? Já que não posso gritar contigo, porque tu não queres discutir…
– Podes. Podes fazer o que quiseres.
– Ah, muito obrigada. Porque é que estás tão simpático? E atencioso? Estás a irritar-me e parece que estás a gozar com a minha cara.
– Estive a ler umas coisas numa revista hoje no consultório. Se um estiver calmo, as discussões não crescem tanto.
– Ah sim? E achas que isso resulta?
– Eu estou mais calmo.
– Eu não. Deixa-te de modernices. Não acredites em tudo o que lês nas revistas. Volta lá depressa porque preciso de gritar com alguém.
[Publicado originalmente na edição de 4 de outubro de 2015]