Lembrei-me daquela figura-tipo, alguém cuja história todos nós ouvimos, contada de uma forma ou de outra, mas cujos contornos são mais ou menos os mesmos. Um senhor ou senhora já de idade que vivia na maior pobreza. Quase sem comer, por vezes sem saneamento básico. Privados das condições básicas para uma vida digna. Um dia morrem e os seus herdeiros encontram uma pequena fortuna debaixo do colchão.
Com o dinheiro que ali estava, aquela pessoa poderia ter tido uma vida bastante mais fácil e confortável. Porventura, mais longa. Perguntamo-nos o que leva alguém a sujeitar-se a viver na miséria, dormindo sobre uma pilha de dinheiro. Consideramos que será avareza extrema, uma doença psiquiátrica, ignorância, talvez.
Foi dessa figura-tipo que me lembrei quando ouvi dizer que tínhamos os “cofres cheios”. Substitua-se o senhor velho pelo país quase milenar, o colchão privado pelos cofres públicos e temos exactamente a mesma história de miséria. Um país cheio de dinheiro guardado a sete chaves, enquanto sobrevive abaixo dos valores dignos nas frentes mais importantes: saúde, educação e justiça.
O que passará pela cabeça dos avarentos recolectores de dinheiro para justificarem os seus actos de avareza extrema não se saberá. O que se sabe, porque não têm pejo de o dizer publicamente, é que os cofres estão cheios. E os cofres estão cheios, porque os bolsos estão vazios. Assim, de forma tão cândida e simples, fica explicado o óbvio: o dinheiro que é retirado a cada um de nós é depois colocado naqueles cofres ditos públicos, mas aos quais não podemos chegar.
Está destinado a uma catástrofe, dizem. Pagar salários e pensões durante alguns meses, caso se acabe o financiamento externo, imagino. Mais ou menos o mesmo raciocínio que a minha querida avó tinha quando dizia estar a poupar dinheiro para o seu funeral. Não que haja mal em que os cofres tenham muito dinheiro, de todo. O problema é que os bolsos estão vazios. E por isso se torna tão dilacerante ouvir aquelas palavras. Bem podia ter dito para comermos brioches.
Não contente com os cofres cheios de brioches para o povo comer em caso de doença terminal, ainda se lança a referência bíblica do «multiplicai-vos» aos jovens que teimosamente esperam o momento digno para trazer uma criança ao mundo.
É melhor não pensar muito. Tudo se cria. Como no tempo da minha querida avó, em que havia uma cabeça de carapau para três irmãos. É isso. Não estejam para aí à espera de condições dignas de trabalho e vida. Vão andando com os falsos recibos verdes num mercado de trabalho tão flexível que tenta vergar o trabalhador até ele partir e metam o dinheiro no colchãozinho.
Depois quando morrerem, os vossos filhos vão poder digladiar-se pelos trocos que amealharam enquanto serviam os poderes políticos, financeiros e económicos até à última gota de suor. É tudo tão simples na cabeça de quem tem as nossas cabeças sob jugo.
Se for para seguir máximas bíblicas, então temos muito por onde começar antes de chegar à multiplicação humana. Podemos começar, por exemplo, com a multiplicação dos pães. Por pães pode entender-se riqueza, por multiplicação pode entender-se a gestão dessa riqueza e temos então o valor maior que será a partilha dos bens de forma justa por todos.
A quem nos diz que nos multipliquemos porque somos jovens, respondamos imediatamente que multiplique e divida o pão equitativamente. Assim, ficaríamos todos satisfeitos: nós, porque poderíamos vislumbrar algum sentido de justiça e ética por parte dos que gerem os destinos da res publica, e eles, porque tudo continuaria dentro do reino da matemática e dos números, como tanto gostam.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[Publicado originalmente na edição de 29 de março de 2015]