Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, a viola amarantina feita tela por uma arquiteta e artista plástica portuense para contar a história das mulheres e assim celebrar os 450 anos do Rio de Janeiro, no Brasil. Cristina Rodrigues, que vive e trabalha em Manchester, Inglaterra, é a artífice.
Cristina Rodrigues, 35 anos, arquiteta de formação e artista por vocação, está a transformar uma série de violas amarantinas pintando-as, a canetas de feltro, de forma a que em conjunto narrem a história das mulheres do século xxi. O resultado será, por estes dias, mostrado em primeira mão aos brasileiros nos 450 anos do Rio de Janeiro, que embora tenham sido assinalados a 1 de março, se celebram durante todo o ano de 2015. O convite partiu de promotores culturais brasileiros que já andavam há algum tempo a «namorá-la» para expor no Brasil e viram nestas comemorações o pretexto ideal. A artista, a trabalhar as violas amarantinas a pedido da Câmara Municipal de Amarante, aceitou levá-las ao Brasil, onde, depois do Rio, «tocarão» o coração de diversas cidades, numa exposição itinerante, em 2016.
A mulher enquanto guardiã das tradições culturais é um tema central do trabalho de Cristina Rodrigues. As suas instalações artísticas contam as histórias das mulheres do seu país e das regiões que o compõem. É essa riqueza cultural que traz a público, em Portugal e além-fronteiras, reiventando-a. Muito do seu trabalho tem partido de dar identidade artística a objetos meramente funcionais, mas de raiz tradicional, muitos resgatados do esquecimento, através da sua interpretação criativa. Foi o que aconteceu com as violas amarantinas, até há pouco tempo em vias de extinção. «Aqui, em Amarante, toda a gente sabe que a viola amarantina nasce de uma história de amor, envolvendo um trovador medieval. Por isso é que tem dois corações no corpo madeirado. Eu quis contar essa história de amor, do ponto de vista da mulher de hoje. Porque sou mulher e essa condição sempre me interpelou», diz a artista plástica, nascida no Porto, em 1980, e que sempre soube que a única coisa que queria fazer era desenhar.
Contra a vontade dos pais, estudou artes, mas foi em Arquitetura que se formou, cedendo à influência paterna, após uma visita à Casa de Chá de Álvaro Siza Vieira e a oferta de um livro do arquiteto. «Achei que ele era um grande poeta da forma, fiquei apaixonada e decidi estudar Arquitetura. Foi o melhor que fiz. Deu-me ferramentas que dificilmente teria nas Belas-Artes. Aprendi a entender o espaço, a escala, as pessoas.»
À Arquitetura seguiu-se um mestrado em História Medieval e do Renascimento, em
que estudou tudo o que tinha que ver com a história urbana do Porto, e depois um doutoramento em Cidade, Paisagem e Território, em Sevilha. Em 2009, partiu para Manchester, Inglaterra, onde vive e trabalha atualmente, para dar aulas na Manchester School of Architecture e fazer investigação no Instituto Manchester de Investigação e Inovação em Art & Design (MIRIAD), da Universidade Metropolitana de Manchester, onde desenvolveu e dirige dois grandes projetos internacionais de investigação: DfD – Design for Desertification e 21st Century Rural Museum. Pelo caminho, reencontrou-se com as artes plásticas. Com ateliê em Manchester e Idanha-a-Nova, tem criado instalações artísticas que cruzam fotografia, pintura, escultura, sempre com as tradições portuguesas como fio condutor, e que já correram mundo, de Portugal a Inglaterra, da Alemanha à China, onde também lecionou, na Zhongyuan University of Technology.
As questões da sociologia, da antropologia e da etnografia marcam o percurso de Cristina Rodrigues. Gosta de entender as pessoas. Fascinam-na. São a grande fonte de inspiração. E as ideias e pensamentos resultantes da observação destas e dos seus contextos, levam-na a reivindicar a paternidade daquilo que diz ser o New Traditional Movement em Portugal e que se traduz em pegar em elementos da cultura popular, a que as pessoas não prestam atenção ou não apreciam, e dar-lhes expressão. «Na cidade ouvimos fado, mas não ouvimos as adufeiras de Idanha-a-Nova. No entanto, elas carregam o nosso legado. Tanto somos fado como somos os adufes, e as adufeiras, e as nossas avós que não sabiam ler.»
E como as violas amarantinas, que até há pouco tempo tinham caído no esquecimento, tendo sido resgatadas por um professor, Eduardo Costa, e um artesão, António Silva, que não as deixaram morrer. Cristina Rodrigues veio agora dar-lhes novo fôlego, e já tem passagem marcada para levá-las ao Brasil. Vinte e cinco violas desenhadas como um corpo de mulher, pintadas de branco, lacadas, folhas de papel sobre as quais a artista cria e que no final serão todas suspensas e iluminadas com luzes led de teatro numa grande instalação que conta uma história: a da mulher no século xxi. «Porque nós não somos só o que somos. Somos nós e os outros. E é assim que a peça vai contar a história.»
Está lá a mulher do campo, mas também está a mulher urbana, nesta instalação, que procura dessacralizar o género feminino e dar-lhe corpo. Todos os corpos. «Crescemos numa geração de pais e avós que olhavam para cima, para o altar das santas. Esta peça desconstrói essa santidade, porque pondera as noções de beleza, bondade, generosidade, maternidade, feminilidade, no século xxi.» O que é ser mulher hoje? É a pergunta a que o trabalho de Cristina Rodrigues procura responder.
O ateliê onde, de luvas brancas, recria as violas, está montado no Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso, em Amarante. Ali foi parar a convite da autarquia, após o reconhecimento da obra que a artista vinha efetuando em Manchester e em Idanha-a-Nova. O facto de Cristina ter origens na cidade de Souza-Cardoso [os avós são de lá] fê-la nem pestanejar. Aceitou o convite para trabalhar uma manta, tomando por base um grupo de mulheres que fazem puxadas de Fridão. «Um tipo de trabalho em tear que quase já não se faz porque já não há público a comprá-lo. Foi assim que comecei a aparecer em Amarante, para dignificar esse trabalho», explica. Daí ao interesse pela viola amarantina foi um instante. «Não conhecia. Fui ver vídeos no YouTube e fiquei fascinada.»
A viola amarantina faz parte de uma família de violas portuguesas únicas. Como a braguesa, a açoriana e a beiroa. «Tem um trinar completamente diferente das demais e não podia deixar-se perder.» O regresso à vida dar-se-á no Festival do Fado dos 450 anos do Rio, na Fundação Cidade das Artes, Rio de Janeiro. Começa na última semana de outubro e não tem data para terminar. «A ideia foi casar o que melhor existe na cultura portuguesa. Mostrar um instrumento da cultura popular ao lado do fado.»
Depois da festa do Rio, a viola amarantina irá «tocar» as paredes da galeria do Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social (BNDES) e várias entidades, de diversas cidades brasileiras, já manifestaram interesse na exposição, cuja itinerância vai prolongar-se por 2016. «A mim interessa-me mostrar a cultura popular portuguesa renovada. Para o brasileiro esta ainda passa muito pelo rancho folclórico. Há um certo complexo. E eu queria mostrar o contemporâneo, aquilo que é a imagem atual da nossa cultura popular.»
A mesma intenção que presidiu ao transporte dos jardins do palácio de Tatton Park, em Manchester, para os claustros do Museu Amadeo de Souza-Cardoso, de A Fonte da Felicidade, uma escultura de ferro que suporta garrafas de Licor Beirão para celebrar a vida e a obra de dois génios criativos portugueses: Carlos Coelho e Paulo Rocha, que deixaram a sua assinatura em marcas nacionais como o Multibanco, a TAP, a RTP, os Correios, a Galp, a Delta ou o Licor Beirão. «Modificaram a vida privada e as formas de convívio no nosso país.» É esse país moderno, mas assente nas tradições, que Cristina Rodrigues toca na viola amarantina.