A resposta do espelho

Notícias Magazine

Tomemos o seguinte em conta: se um estudante não terminar o teste dentro do horário destinado, a sua avaliação sofrerá com isso. O mesmo acontecerá com o desportista que tem um determinado número de minutos para vencer. Se o ultrapassar, não ganha.

Agora, tomemos o trabalho criativo: não adianta estabelecer horários rígidos, porque nunca se sabe quando aquela ideia poderá aparecer ou quando poderá ficar finalizada.

Ao avaliar a cultura de trabalho em Portugal, apercebemo-nos de um paradoxo que junta (o pior d’) os dois mundos: os múltiplos objectivos a cumprir dentro do menor tempo possível e a criatividade de muitas empresas no que toca à hora de saída do trabalho.

Nunca se sabe quando poderá vir a «inspiração» e, para evitar que as ideias surjam a caminho de casa, nos tempos livres passados em família ou a sós, fora da empresa, algumas chefias acham por bem instituir uma regra tácita que é a de que quem fica depois da hora de saída é que é o trabalhador mais dedicado.

Algumas, não contentes com a liberdade de escolha do trabalhador em ficar para além do seu horário, estabelecem como regra, precisamente, o trabalho extraordinário. Claro que o que um dos lados tem de demonstrar como dedicação à empresa, o seu trabalho extraordinário, o outro lado não demonstra como gratidão ao trabalhador, a devida remuneração.

Ora num mercado laboral que avalie os trabalhadores como um teste avalia a capacidade de organização e produção de um aluno, o sair mais tarde seria considerado chumbo rotundo. Provaria que o trabalhador não conseguiu organizar o seu trabalho dentro das mais que suficientes horas de expediente e, fazendo- o repetidamente, mostraria uma falha que poderia ser também sua, mas sobretudo da chefia que, convencida de que os seres humanos têm o poder especial de trabalhar horas infindas sempre com o mesmo ritmo de produção e a mesma qualidade, insiste que a solução não é contratar mais uma pessoa para a equipa, mas antes sobrecarregar a equipa com trabalho.

Infelizmente, grande parte do emprego em Portugal não é de natureza criativa. E quando falo de trabalho criativo, não me refiro apenas ao trabalho artístico. Refiro-me também ao trabalho que teria lugar em tantas empresas, mas que não é valorizado porque a cultura laboral portuguesa não o valoriza. É aquele trabalho que se faz por se pensar de forma diferente, por não se estar preso a uma liderança hierarquizada e «senhor doutorizada», mas a uma liderança dinâmica e informal.

Isso implicaria que os chefes deixariam de ser chefes e passariam a ser líderes, o que obriga a uma maior preparação e menor presunção. Implicaria ainda que cada um poderia gerir o horário de trabalho conforme o seu ritmo de produção o que, convenhamos, serve melhor os interesses de uma empresa do que cem trabalhadores cansados e desmotivados, presos a uma secretária dez horas por dia. Não será difícil imaginar que um trabalhador com tempo livre para usufruir da sua vida privada é um trabalhador infinitamente mais motivado. Mas parece que sim, tendo em conta a noção quase herética para muitas chefias de que um trabalhador com liberdade para fazer escolhas dentro da estrutura organizacional de uma empresa é um trabalhador mais produtivo, logo, uma mais-valia para a mesma empresa e não um alvo a abater.

De cada vez que coçarem a cabeça a perguntar a si mesmos que raio de milagre transforma os malandros dos trabalhadores tão indolentes no seu país em bons trabalhadores assim que saltam a fronteira, dêem uma olhadela ao espelho e perguntem-lhe assim: «Espelho meu, espelho meu, haverá no mundo melhor chefia do que eu?»

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
16-8-2015