Não poucas vezes, tendemos a considerar a nossa rotina diária como algo desinteressante e aborrecido. As pequenas histórias e injustiças do quotidiano parecem-nos comezinhas, quando comparadas com as grandes questões e problemas humanos. A esta percepção ajuda que os órgãos e poderes de decisão apareçam ao cidadão comum como inatingíveis, fechados que estão os seus intervenientes em discursos herméticos e com os quais se torna impossível relacionarmos a nossa vida e as dificuldades que experimentamos no dia-a-dia.
Esta sensação de grandiloquência levará, não poucas vezes, a que sintamos que a nossa intervenção na vida da sociedade em que nos inserimos será redundante ou que estará acima das nossas possibilidades e capacidades. No entanto, é precisamente sobre os pequenos problemas diários que podem construir-se discursos que ajudem à solução dos grandes problemas sociais, que mais não são do que a soma dos inúmeros pequenos problemas de todos nós.
Ajudará, talvez, substituir o conceito de sociedade, grande e distante, pelo conceito de comunidade, próximo e familiar. Enquanto comunidade, seremos um conjunto de pessoas com as mais variadas aptidões, experiências pessoais e profissionais, e o sucesso da intervenção comunitária estará no aproveitamento dessas aptidões e características individuais para o bem comum. Mas precisará sequer a comunidade da intervenção de todos, ou dever-se-á delegar em quem detém aptidões políticas e de gestão a condução dos nossos destinos comuns? Ainda para mais, em tempo de crise, será necessária apenas a intervenção dos especialistas, que saberão lidar com os desafios impostos, ou haverá espaço para a nossa participação?
A «crise» leva apenas a que sejam ainda mais necessárias as contribuições diversas que resultem da vivência, da análise e criatividade de cada interveniente. Num contexto estritamente político, pela confluência de experiências semelhantes em termos profissionais, as soluções encontradas serão estandardizadas e aproximadas, ao passo que, num contexto de intervenção comunitária, as soluções aventadas serão, necessariamente, variadas em tipologia e conteúdo.
A multiplicidade de vozes e de contribuições poderá constituir um entrave à produção de um discurso coerente e praticável, poderão contrapor. Por isso, será necessária a criação de uma relação estreita entre os intervenientes de uma comunidade e os intervenientes políticos, que possibilitará a troca de ideias, de discursos e a filtragem natural entre as propostas viáveis e as propostas inviáveis.
A questão que se levanta é de que forma é que podemos intervir na vida da nossa comunidade, num exercício que nos seja confortável e onde nos sintamos pertinentes. Começando no pequeno gesto, no pequeno agregado, que pode significar o nosso prédio, o nosso local de trabalho, o nosso bairro e que poderá alargar-se à nossa cidade, distrito, e tendo de se ajustar a intervenção à medida das nossas capacidades e experiência.
Há um sentimento generalizado de que é necessário fazermos algo pela nossa comunidade. Mas, muitas vezes, a noção de intervenção é tão desmesurada que permanecemos mudos e quedos perante tão gigantesca tarefa. Bastará que cada um intervenha à sua escala, à sua medida, à medida do seu quintal, para que a mudança seja à escala de todos. Como a música, a acção cívica é um esforço individual, feito em conjunto com outros para o proveito de todos.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[Publicado originalmente na edição de 22 de fevereiro de 2015]