A maioria das licenciaturas, dos mestrados e dos doutoramentos em Portugal são concluídos por mulheres. No entanto, apenas nove por cento chegam aos lugares de decisão. E quando chegam recebem menos 29 por cento do que os homens. Há qualquer coisa de errado nestas contas, não lhe parece?
SARA FALCÃO CASACA
Professora do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), da Universidade de Lisboa, é doutorada em Sociologia Económica e das Organizações. As mulheres, o trabalho e a (des)igualdade de género têm sido o foco da investigação desta feminista que em 2010 presidiu à Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género e acaba de lançar o projeto Promoção da Igualdade de Género nas Empresas: do Diagnóstico à Ação.
Coordena um novo projeto de promoção da Igualdade de Género nas Empresas, liderado pelo ISEG. O que traz de novo?
_O nosso projeto terá, em cocriação com as empresas, uma equipa de investigadoras a desenvolver todo um processo de mudança no sentido da igualdade de género no acesso aos lugares de topo. Em sociologia valorizamos o método de investigação-ação, e é isso que vamos fazer: trabalhar com as empresas nas várias fases do processo para que, quando sairmos, a igualdade esteja incrustada nos procedimentos, nas práticas de gestão de recursos humanos, mas também no lado mais invisível das rotinas e das práticas informais que regem o quotidiano das empresas.
Que fases são essas?
_ Primeiro faremos o diagnóstico, que permitirá identificar as principais barreiras à igualdade na organização, mas olhando-a como um iceberg e tendo em mente que não basta olhar para o que é visível: a gestão de recursos humanos, a estrutura organizacional, etc. Queremos ir para lá da ponta do iceberg, onde acreditamos que muitas das barreiras à igualdade se situam: as representações, as perceções, os estereótipos, as práticas e rotinas informais. É preciso uma equipa externa para ajudar a identificar e a desconstruir essas barreiras, mas não podemos fazer o diagnóstico sem o empenho de quem gere as organizações aos vários níveis e por isso será preciso criar uma task force interna para trabalhar connosco.
E depois?
_Feito o diagnóstico, tanto dos aspetos mais visíveis como dos mais ocultos, procederemos à elaboração de um plano de intervenção, que será implementado com o apoio da nossa equipa, que fará também a monitorização. O que é novo? O trabalho conjunto e no terreno da equipa de investigadoras com a equipa interna da empresa durante todo o processo, desde o diagnóstico à intervenção e depois à avaliação. Acreditamos, com este projeto, estar a oferecer às empresas um apoio altamente qualificado para a promoção da igualdade entre mulheres e homens nos lugares de decisão. Temos dois objetivos principais: aumentar o número de mulheres em lugares estratégicos e combater o gap salarial que existe em desfavor das mulheres.
Nos lugares de topo também existe um gap salarial?
_Os estudos mostram que o gap salarial tem estado inalterado na última década: menos 18 por cento nas remunerações de base e 21 por cento nos ganhos extraordinários para as mulheres por trabalho igual. No caso dos quadros superiores, o gap é de 29 por cento.
A equipa de seis investigadoras, coordenada por si (ISEG), em parceria com o Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (CIEG) e o Centro de Estudos para a Intervenção Social (CESIS), conta também com a Noruega como parceira, através do Centro de Investigação em Género, da Universidade de Oslo. A Noruega é o país da Europa onde existe maior representação de mulheres nos lugares de topo das empresas. Como o conseguiu?
_Através das quotas. Na Noruega, esse número é superior a 40 por cento, mas a Islândia neste momento tem mais. Após a crise financeira, os homens ficaram desacreditados e foi a janela de oportunidade para as mulheres tomarem as rédeas do poder, também na esfera económica. Mas a Noruega foi pioneira e esta parceria permitirá uma partilha importante de know-how. Há várias iniciativas programadas no sentido de perceber como se desenvolveu o processo no país desde que as quotas foram implementadas.
E como se desenvolveu?
_Quando o ministro do Comércio e da Indústria, Ansgar Gabrielsen, impôs, em 2003, quotas que previam, até 2008, uma meta de 40 por cento de mulheres nos conselhos de administração das empresas cotadas em bolsa, disse qualquer coisa como isto: «Não me chamem feminista, venho de uma das famílias mais conservadoras da Noruega, mas tenho responsabilidades governamentais e estas exigem que faça o melhor pelo meu país. Se as mulheres estão sobrerepresentadas no total de pessoas com qualificações elevadas, só tenho de as puxar para os lugares de decisão porque isso reverterá a favor das empresas e da economia.» É interessante que esta visão instrumental tenha estado subjacente à medida. Outros países seguiram o exemplo, com resultados muito interessantes, como a Itália, que em 2005 tinha apenas três por cento de mulheres em lugares de decisão e hoje, após a aplicação de quotas, para lugares executivos e não executivos, em 2011, já tem 24 por cento, quando a média na União Europeia é de 20. Num curto intervalo de tempo foi possível acelerar uma mudança, o que prova que só vamos lá com medidas vinculativas.
Não estando medidas destas no horizonte, em Portugal, o projeto que coordena procura, através de uma dimensão mais prática, produzir os mesmos efeitos?
_Sim, é um projeto que vai apoiar a autorregulação, e penso que este é o momento certo para avançar. Os indicadores não mudam: continuamos a ter só nove por cento de mulheres nos lugares de decisão das empresas cotadas em bolsa, o que nos coloca na cauda da Europa. Isto exige o equacionar de medidas mais vinculativas. Este projeto é um passo nesse sentido, mas não nos interessa nada, quando o concluirmos, deixar algumas mulheres nos conselhos de administração apenas a fazer número. Essa é a questão das quotas: temos de trabalhar sempre, paralelamente, no sentido de proporcionar uma mudança substantiva, qualitativa. O debate agora na Noruega tem que ver com o facto de os 40 por cento de mulheres nos lugares de decisão não se traduzirem numa alteração das relações de poder. Já são, aliás, designadas de golden skirts [saias douradas]. Nós não queremos golden skirts. Queremos, com este projeto, alterar o modo como as decisões são tomadas e equilibrar as relações de poder dentro das organizações.
Em Portugal há mais mulheres do que homens com qualificações elevadas, além de que é um dos países da Europa com mais mulheres no mercado de trabalho. Isto torna esse quadro de desigualdade ainda mais incompreensível?
_Independentemente da qualidade do emprego, que é muito fraca em Portugal (segundo os últimos dados do Inquérito ao Emprego, do INE, temos 40 por cento de mulheres em idade ativa em situação de vulneralbilidade laboral), havia um indicador de que eu gostava no nosso país: a taxa de emprego feminino. Tínhamos um valor muito confortável no quadro da UE. De tal forma que, quando pela primeira vez os decisores políticos europeus definiram uma meta para o emprego feminino, em 2000, estabelecendo uma taxa de 60 por cento em 10 anos, Portugal já a tinha. Hoje estamos nos 57 por cento, um dos valores mais baixos do Portugal democrático, o que é preocupante para quem defende a independência económica das mulheres e a sua participação no mercado de trabalho, que são o garante da sua autonomia, da sua liberdade e da sua autodeterminação.
A conciliação entre família e trabalho é uma das questões sempre em cima da mesa quando se fala no acesso das mulheres aos lugares de topo, mas, tendo em conta a cultura empresarial e a forma como as empresas se organizam, não é quase impossível conciliar família com uma carreira de sucesso (na verdade, o que os homens têm feito é abdicar da família, e dos filhos, que ficam arrumados lá em casa)?
_O que diz é extremamente importante. Por isso, integraremos no diagnóstico das empresas não só a cultura organizacional como os modelos de organização do trabalho, porque estes é que têm de ser alterados de forma mais compreensiva. As organizações não são neutras. Foram criadas por homens e refletem nas suas estruturas, nas suas políticas, no modo como as decisões são tomadas, na forma como o tempo de trabalho é organizado, a imagem desse trabalhador masculino isento de responsabilidades familiares, e isso é preciso desconstruir.
Porque tem sido tão lento esse processo de desconstrução?
_Podia falar-lhe das mentalidades, mas já parece uma cassete. É verdade, porém, que as representações tradicionais, na forma como os papéis de género são concebidos, são dos principais obstáculos. Os homens que hoje estão à frente das empresas continuam a reproduzir o modelo masculino tradicional, com famílias, de três ou quatro filhos, em que as mulheres ou abdicaram da carreira profissional ou trabalham a tempo parcial e asseguram a vida familiar. Isto não acontece com as mulheres que chegam aos lugares de topo, para quem os custos familiares e pessoais são muito evidentes. Aquela imagem que por vezes é passada destas como supermulheres, muito felizes, muito cuidadas, com vidas maravilhosas familiar e profissionalmente, é pouco realista. As mulheres que tenho entrevistado vivem a articulação entre as duas esferas de forma muito tensa, mesmo quando têm um bom apoio de retaguarda, porque o sentimento de culpa está sempre lá. Fiz uma investigação sobre mulheres portuguesas expatriadas, que vão para fora ocupar lugares de gestão. Em vinte, só três tinham crianças, o que quer dizer que estes lugares não são compagináveis com quem tenha responsabilidades familiares ou expetativas de as ter, o que não é justo para muitas mulheres cuja identidade e projetos de vida passam pela maternidade, como não o é para muitos homens que não se encaixam no modelo masculino hegemónico e tradicional e querem ter uma vida familiar.
«A igualdade é um bom negócio» é o lema do iGen, um projecto da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, com o qual colaborou. Quais as mais-valias da igualdade?
_ Embora perceba, e utilize, o discurso do business case e saiba que é importante para as empresas compreender que promover a igualdade pode trazer benefícios do ponto de vista da gestão, competitividade e resultados económicos e financeiros, o meu argumento primeiro é sempre o da justiça social e dos direitos humanos. As empresas têm de fazer isto porque é justo. As mulheres são a maioria da população; 59 por cento das pessoas que concluíram licenciatura em 2011 e 2012 são mulheres, 65 por cento das que concluíram mestrado são mulheres e 56 por cento das que concluíram doutoramento são mulheres. É justo que estas mulheres, que estão a investir nas suas habilitaçãos e no seu capital humano, tenham oportunidade de desenvolver a sua carreira profissional. É um contributo para o processo de democratização do país, que está longe de estar conseguido em muitas dimensões. Esta é uma delas. Enquanto as mulheres não estiverem presentes na esfera da decisão e do poder, seja político ou seja económico, teremos sempre um processo de democratização inacabado.