Na Finlândia, estuda-se a hipótese de se deixar de ensinar escrita cursiva às crianças na escola. Dizem que pretendem substituí-la pela escrita de imprensa, para as aproximar daquilo que encontram nos teclados e na vida profissional.
As intenções serão boas, mas a uniformização da escrita individual preocupa-me, como me preocupam todas as uniformizações da criatividade e individualidade. A minha letra faz parte da minha personalidade. Diz quem estuda caligrafia que se consegue perceber certos traços de personalidade e até de saúde ao observar-se a forma como as pessoas escrevem, como desenham as letras do alfabeto. Acima de tudo, parece-me que incentivar a escrita cursiva promove a valorização da liberdade e do indivíduo.
Obviamente que os signos são convenções, pertencem ao colectivo e o indivíduo não tem poder para os modificar a seu bel–prazer. Não se advoga que cada um desate a desenhar um «A» como bem lhe aprouver. Quer dizer, poder, até pode, mas ninguém o iria perceber, porque um «A» tem um padrão e um número específico de ângulos para que possa ser reconhecível por todos. A não ser que se pretendesse criar um código secreto, partilhado apenas com alguns.
À parte os enredos de espionagem, há uma certa liberdade na forma como traçamos as letras do abecedário. Quando era mais nova, diziam-me que não tinha letra de «mulher». Nunca percebi bem o que isso significava. Ou nunca quis perceber. Acho um bocadinho ofensivo que se construam ou alicercem estereótipos de género a partir da caligrafia de cada um. Que a caligrafia feminina tem de ser arredondada, airosa, de pena leve, bonitinha. Que a masculina tem de ser angulosa, densa, austera.
O meu traço é pessoal e intransmissível, como uma impressão digital. Por isso mesmo, é precioso para mim. Para além disso, na escola, por tirar apontamentos nas aulas à mão, toda a matéria ficava mais presente na minha memória. E escrever cartas de amor a computador? Não, obrigada. Muito menos a letra de imprensa, mesmo que à mão. Que amor seria esse que não se distingue entre a floresta de «AMORES» de imprensa, caracteres frios, iguais, sem traço mais ou menos carregado, que carreguem a chama, o calor típico dos afectos?
É certo que se se optasse pela escrita manuscrita sempre, porventura alguns de vós não entenderiam tudo aquilo que escrevo, por poderem não perceber bem a minha caligrafia. Não se pretende dizer que a letra manuscrita é sempre melhor do que a letra de forma, ou de imprensa. Cada letra no seu galho, pois claro. A manuscrita, no campo dos afectos, das relações pessoais, e a de imprensa, no campo do trabalho e do social.
O que me leva a pensar, será que se se limitar o acesso à escrita cursiva se muda a forma como nos relacionamos por escrito? Primeiro, se não conheço a minha caligrafia, que é a interpretação pessoal de um objecto com características específicas, será que isso influirá na forma como penso e me movo no mundo? Será que terei maiores dificuldades em pensar pela própria cabeça, se nem pensar pela própria mão consigo? O que será da arte, se não se conseguir pensar para lá do que nos é apresentado?
Depois, se todas as cartas de amor, todos os postais, todas as mensagens em post-its deixadas à pressa na porta do frigorífico forem escritas da mesma maneira, um carácter e depois outro, todos eles tão iguais, todos eles sem expressão para além da que lhe foi ditada pela convenção, será que assim serão também as relações que construímos? Automatizadas, iguais, previsíveis?
No mundo dos adultos, o recurso à letra manuscrita é residual, dizem. Poderá ser, sim. E talvez o problema não resida na letra cursiva, mas no mundo dos adultos.
Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia.
[Publicado na edição de 4 de janeiro de 2015]