Via-Sacra portuguesa

Precariedade. Desemprego. Empresas que fecham. Pessoas que são obrigadas a entregar as casas ao banco. Gente carregada de dívidas. E créditos. Que se vê na rua. Sem dinheiro para alimentar os filhos. Pais de crianças com necessidades especiais com outros dramas para lá do óbvio. Portugueses que deixam o país, e pior do que o país, a família, em busca de melhor vida. Em busca de uma vida. Reformados com reformas decepadas. Indignas. Fome. Desespero. Suicídios. Crise. Troika . Impostos. Endividamento. Carência. Austeridade. Os portugueses carregam uma cruz. Uma cruz demasiado pesada para as suas costas. São abertura de todos os noticiários, manchete de todos os jornais, tema de acalorados debates. Parecem percorrer uma espécie de via-sacra, o caminho percorrido por Jesus do Pretório de Pilatos até ao monte Calvário. Na Semana Santa, em que se recorda a morte e se celebra a Ressurreição de Cristo, traçamos o paralelo entre a via-sacra e o pedregoso caminho que muitos portugueses estão a percorrer, em tempos de crise.

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1 ª Estação: Jesus é condenado à morte

Parece uma loja de outro tempo, engolida por este tempo. Prateleiras e grande balcão de madeira, armários antigos com muitas gavetas, um gato gordo dormitando junto à máquina de escrever onde Mário Vinagre, de 68 anos, escreve mais uma carta dando conta do fim do negócio de uma vida. O apelido do proprietário – Vinagre – não podia ser mais cruelmente certeiro para os dias que ali se vivem. «Foram 24 anos aqui, à frente disto, fora os outros em que estive como empregado. Foi aqui que conheci a minha mulher, e estamos casados há 41 anos. Foi uma vida.»

Estão vazias, as prateleiras onde antes se alinhavam anzóis, carretos, fios, pingalins. A máquina registadora, tristemente oca de moedas e notas, está para ali, sem préstimo algum. Era preciso, segundo as novas diretivas do governo, substituí-la por outra, capaz de brotar faturas com números de contribuinte. Ideias pioneiras para um negócio que estava já nos últimos estertores. «Foi só mais um prego neste caixão. Não valia a pena mudar a máquina. Para quê? A loja já praticamente não vendia… Antes desse prego, já tinha havido outros, como a subida brutal dos impostos. Não há pequeno negócio que aguente.»

Chamava-se Anzolmar, a loja de artigos de pesca, e ficava em Belém (uma crua ironia bíblica). Teve períodos áureos mas de há uns três anos a esta parte começou a ressentir-se da crise. «Esticámos a corda até onde pudemos. O contabilista bem nos dizia: “Isso já é só amor à camisola.” Fomos percebendo que não dava mais. Agora fechamos de consciência tranquila. Não devemos nada a ninguém. Aqui na Rua da Junqueira, entre a Pastelaria Chique 2, que fica no número 274 e a Pastelaria Chique 1, que fica no 524, contámos 12 lojas fechadas. Havia aqui tudo: mercearias, drogarias, lojas de roupa, ourivesarias, fotógrafos… não sobra quase nada.»

Um desalento a que Mário e Aline Vinagre foram assistindo, num silêncio confrangedor. Quase como se não quisessem assumir, em voz alta, que seriam os próximos a ter de fechar portas. «Tínhamos dias em que nem a caixa abríamos. Ficávamos aqui horas sem ver entrar ninguém. Chega. Venho cá amanhã e depois vou entregar a chave à senhoria. Não venho mais. Se me custa? Não! Já custou tudo o que tinha a custar. Esta é uma morte há muito anunciada. Agora vamos para casa. Acabou-se.»

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2.ª Estação: Jesus carrega a cruz às costas

«Então, João? Então, meu amor? Como foi a noite, meu querido?» João não responde, nem há-de responder nunca. Tem três anos mas não vê, não fala, não anda. Nunca sorriu e só chora quando as dores são excruciantes. Limita-se a existir, e mal. Tem paralisia cerebral de grau 5 associada à síndrome de West, o pior tipo de epilepsia que existe, com convulsões violentas e constantes. Alimenta-se através de uma sonda nasogástrica e apresenta um quadro respiratório muito complicado.

Célia Grazina, a mãe, tem 41 anos e uma dor cravada no corpo e na alma. É visível a sua dor, tão densa que é praticamente palpável. Sobretudo pela certeza de que esta é uma cruz que alguém lhe pousou nas costas. E não foi Deus, nem a natureza, nem o destino. «Foi gente cuja negligência me deixou um filho neste estado.»

Célia e David já tinham uma filha, Beatriz, e quiseram dar-lhe um irmão. A gravidez correu sempre bem, foi desejada e acompanhada, todos os exames foram feitos, o bebé estava bem. O parto, porém, correu todo ao contrário: «Fui deixada nas mãos de uma equipa da MAC (Maternidade Alfredo da Costa) que claramente não sabia o que estava a fazer. Estive uma hora e meia em período expulsivo, com um monte de procedimentos inacreditáveis pelo meio. Tiraram-me o João em morte aparente, asfixiado por 1 hora e 40 minutos de período expulsivo.»

Célia e o marido apresentaram uma queixa-crime, o caso está em tribunal, em vias de conhecer um desfecho. Independentemente da decisão judicial, João é e será filho de Célia e de David. Para sempre. A vida destes pais é mais uma não-vida. Célia deixou de trabalhar durante dois anos e meio para se ocupar do filho. Durante esse período, contaram apenas com o ordenado de um, mais todas as despesas inerentes a uma criança com estas dificuldades. «O João é internado mês sim mês não. Quando está em casa, um de nós fica acordado toda a noite, para o podermos aspirar de cinco em cinco minutos porque ele não consegue engolir as secreções. Além disso, temos de vigiar as convulsões e dar medicação em SOS.»

Para poder trabalhar, Célia ainda tentou pô-lo no infantário onde a irmã tinha andado, mas a Segurança Social não disponibilizou ninguém com formação adequada. Teve de desistir. Agora, quando não está internado, passa o dia na Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa, em Odivelas, e assim a mãe já pode trabalhar: «Voltei para o meu emprego, depois de dois anos e meio em casa. Estou há 18 anos na Socosmet e têm sido inexcedíveis comigo. Sabem que vou sempre ver o João antes de ir trabalhar, quando está internado como agora, e sabem que tenho de faltar várias vezes. Tenho medo de ficar sem emprego, mas é o meu filho, não o posso abandonar.»

A família não recebe apoios do Estado porque ambos, pai e mãe, trabalham. A crise abalou-os mas preferem manter-se ocupados e úteis do que subsidiodependentes: «Os pais que ficam em casa têm direito a tudo. Mas perdem a vida e a identidade e até a sanidade, creio. Eu precisava de trabalhar, antes que enlouquecesse. Mas acho que, com o que me fizeram, merecia mais ajudas do que as que tenho, que são nenhumas.»

Célia Grazina está emocionalmente devastada, exausta. Divide-se entre o desejo de não ver partir o seu João e o anseio por que cesse de vez o seu sofrimento, tanto sofrimento numa vida tão curta, num corpo tão pequeno. «Os médicos dizem-me que ele não dura muito e eu divido-me. Não tenho direito a pensar em nada. Limito-me a seguir em frente e a deixar nas mãos dos médicos e do divino.» Baixa os olhos, beija a testa do seu filho, e pergunta, para jamais escutar resposta: «Então João? Então, meu amor? Vamos sair do hospital, vamos?»

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3.ª Estação: Jesus cai pela primeira vez

Dois pacotes de leite, quatro iogurtes, uma garrafa de óleo, meia dúzia de ovos. Sónia Pinto, 29 anos, licenciada em História Moderna e Contemporânea e com uma pós-graduação em Património e Projetos Culturais, passa códigos de barras por um leitor e vai enfiando tudo em sacos. No final, diz o valor a pagar, recebe, dá o troco se for caso disso, e prepara-se para repetir tudo outra vez, ainda que os produtos e os códigos de barras variem. Arroz, feijão, bifes de frango, meio quilo de maçãs Golden.

Quando ouvia os pais falarem na importância do «canudo» ou quando estudava matérias como «Formação do Portugal Moderno», no ISCTE, não podia sequer supor que o seu destino seria a caixa de um supermercado. Mas foi. E é. E tudo indica que continuará a ser. «Durante o curso arranjei um part-time no Pingo Doce, para ter algum dinheiro. Depois, quando acabei a pós-graduação convidaram-me para um novo part-time e eu pensei que seria uma boa ideia, para ganhar uns trocos enquanto não arranjava emprego na minha área. Mal sabia eu.»

Mal sabia Sónia que o emprego na área nunca chegaria a aparecer. Ainda se candidatou a alguns concursos públicos para integrar Câmaras Municipais, mas nunca conseguiu passar das entrevistas: «Depressa percebi que os concursos públicos têm muito que se lhe diga. E acabei por desistir.»

O emprego que julgava temporário virou definitivo. Vai fazer cinco anos que é operadora de caixa no Pingo Doce. Há três que está efetiva. Ganha cerca de quinhentos euros de base e, neste momento, é chefe de caixas. E gosta. «Faço basicamente o mesmo, porque continuo a ser operadora de caixa. Só tenho um pouco mais de responsabilidade. O ato em si, de passar os produtos, é monótono. Mas gosto do contacto com o público. De algum público, porque também há os arrogantes, aqueles que acham que por estarmos numa caixa não somos gente. No outro dia um cliente disse-me, todo sobranceiro: “Se tivesse estudado não estava aí.” Engoli em seco, para não ser mal-educada, mas doeu. Se não tivesse estudado? Tanto que estudei. E aqui estou.»

Os seus colegas de curso estão quase todos em situações semelhantes. Só meia dúzia está a trabalhar na área. Ela, que continua a adorar História, resignou-se. E só deseja mesmo continuar com o emprego que conseguiu arranjar: «Não tenciono sair daqui. Já percebi que não vou dar uso à licenciatura nem à pós-graduação, paciência. O país não está para aventuras. E também não me vejo a emigrar. Vivo com os meus pais, ainda. Talvez quando acabar de pagar o carro consiga pensar em arranjar uma casinha para mim. Ou então não, sei lá se consigo. Constituir família? Gostava, claro. Mas para já não está nos meus planos. É difícil…»

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4.ª Estação: Jesus encontra a sua mãe

A casa era fria. Gelada. Filipa já se tinha queixado dúzias de vezes. Que tinha os pés frios. E as mãos. E o nariz. Que andava sempre constipada. Joel, o marido, sabia que era tudo verdade mas foi desvalorizando o assunto. Até que ela engravidou. Uma grande alegria. E então, sim. Já se justificavam as obras para tornar o T2 em Canidelo mais quentinho. «Fomos ao banco e requeremos um crédito para obras. Pedimos trinta mil euros. O processo foi-se desenvolvendo todo, veio a engenheira fazer a avaliação, e o meu gestor de conta disse que estava tudo muito bem encaminhado, que o crédito estava pré-aprovado e iam só tratar da burocracia para se assinarem os papéis.»

Joel Aguiar, 27 anos, tinha acabado de herdar algum dinheiro pela morte do pai e, ao receber as boas notícias do banco, decidiu avançar com as obras. Mandou vir os homens que costumam trabalhar com ele no negócio da restauração de casas e puseram mãos à obra. Partiram paredes. Portas. Janelas. Arrancaram o chão. Um dia, precisamente o dia em que o FMI entrou em Portugal, Joel estava no telhado a remover as telhas quando o telefone tocou. No visor do telemóvel, o número do banco. Atendeu e, do outro lado, a voz condoída do gestor de conta: «Venho dar más notícias». Joel sentou-se. «O crédito voltou para trás. Foi recusado.»

Faltam as palavras para descrever o que sentiu nesse momento. Estava no cimo da casa esventrada, com o céu por cima da cabeça e a escutar o barulho da destruição que os homens das obras iam fazendo, em baixo. Olhou para as nuvens, incrédulo. Não sabe quanto tempo esteve assim, imóvel, numa conversa muda com Deus. Tinha gasto parte do seu dinheiro, tornado a sua casa inabitável, estava a viver com a mulher e a bebé (que entretanto nascera) na casa dos sogros, e agora o banco recusava o crédito que parecia praticamente certo.

A obra parou, Joel e Filipa ficaram sem dinheiro para a concluir ou para comprar uma nova, tiveram de ficar a viver com os pais dela. Puseram a casa à venda, mas ninguém a quis comprar. Filipa engravidou novamente. Mudaram-se para a casa da mãe dele, onde vivem há 8 meses. A Leonor tem 1 ano e meio. A Laura tem 3 meses. Joel sente-se encurralado: «Sempre trabalhei, sempre fui independente. Nunca quis viver em casa de ninguém. E agora estou de mãos e pés atados.»

Foi assim que, certo dia, em desespero, decidiu criar uma página no Facebook: «Querem ganhar uma casa? Adiram ao evento». A ideia é tentar angariar cinco mil pessoas que se disponibilizem a dar vinte euros para entrar num sorteio: «O vencedor ficará com uma moradia térrea inserida num terreno de quatrocentos metros quadrados, a cinco minutos da praia de Salgueiros, por vinte euros.»

Joel Aguiar não sabe se o evento vai dar em alguma coisa, mas espera que sim. Afinal, ele só queria tornar mais quente uma casa gélida, para receber um recém-nascido. E agora só quer voltar a ter um teto para poder viver com a mulher e as filhas. E deixar a casa da mãe, que já é tempo.

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5.ª Estação: Simão Cireneu ajuda Jesus

Segundo os Evangelhos Sinópticos, Simão Cireneu foi obrigado pelos soldados romanos a carregar a cruz de Jesus Cristo até ao Gólgota, onde Jesus foi crucificado. Joaquim Sá não foi obrigado a nada e, por isso, a comparação só em parte faz sentido. Ele carrega as cruzes dos outros voluntariamente, porque assim lhe dita a consciência. Há trinta anos que o faz, com muito gosto, ou melhor, com o gosto amargo de quem assiste a cada vez mais pobreza e exclusão social.

Todos os dias a sua vida se repete. À hora do almoço, sai da Escola Rafael Bordalo Pinheiro, nas Caldas da Rainha, onde é administrativo, e vai buscar o almoço para dezenas de sem-abrigo que o esperam como quem, depois da noite, aguarda pela alvorada. É uma espera sem ânsia, porque é isenta de dúvida. Aquelas pessoas têm fome e sabem, de um saber feito certeza, que Joaquim Sá chegará, mais minuto menos minuto, para lhes saciar o vazio do estômago e, até, para lhes sossegar o vazio da alma. Porque ele não leva consigo apenas o desjejum. Leva sempre um olhar, uma palavra, um sorriso. Leva humanidade.

Depois de cumprida a primeira missão do dia, Joaquim volta para o trabalho. E à noite, regressa com a cruz que, não sendo sua, tomou por sua. Entre as 20h30 e as 21h00, é vê-lo de novo a calcorrear quilómetros, num passo acelerado, com sacos que deixam um perfume a comida quente pelas ruas sossegadas das Caldas. A essa hora, enquanto as famílias jantam, nas suas casas, Joaquim Sá distribui refeições, por detrás do CCC (Centro Cultural e de Congressos).

Há mais gente nesta rede de ajuda aos que nada têm, que este bom homem começou. Pessoas que cozinham, outras que doam as sobras de padarias e pastelarias da zona. Até se formou uma associação, em tempos, tal era a vontade contagiada de apoiar os desvalidos (Associação Volta a Casa). A Câmara interessou-se, na altura, e disponibilizou um espaço que era perfeito, para que as pessoas pudessem comer sem ser ao relento. O interesse durou nove anos, mas em 2010 o contrato não foi renovado. «Voltámos novamente para a rua.» E é onde estão, ainda.

Joaquim Sá tem 50 anos e um olhar que não se descreve. O olhar de quem já viu muito, mais do que esperaria ver. Nas ruas, todos o cumprimentam com um respeito raro. Sabem que ali vai um homem bom. Um homem que há trinta anos tomou para si as dores dos outros. E que agora, mais do que nunca, sabe que não lhes pode virar as costas.

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6.ª Estação: Verónica limpa o rosto de Jesus

O homem entra cabisbaixo, os olhos pregados ao chão. Silencioso. Tão silencioso que quem não estivesse atento podia perfeitamente não dar por ele, espécie de fantasma errante a vaguear por ali. Entra, pede sem pedir uma dose de champô, pede sem pedir uma toalha, pede sem pedir desculpa por ter entrado, por estar, por ser. De seguida, desaparece para o interior do balneário e, pouco depois, o som jactante da água que lhe lavará o corpo de gente, e não de espectro, já ecoa pelo espaço, já anuncia, se não um homem novo, um homem menos transparente.

O homem, sabemos depois, tinha um emprego e deixou de ter. Cortaram-lhe a água por falta de pagamento. A mulher também está no desemprego. Os filhos, três filhos, tentam perceber que voltas são estas que as suas vidas levaram. Sabem de cor a palavra «crise», melhor que muitos porque a sabem de um saber de experiência feito.

O velhinho Balneário Público de Alcântara, nascido na década de 1930, já assistiu a muitas crises. Assiste agora a mais esta. Há uns anos, Vítor e Rosa, então funcionários do equipamento gerido pela Junta de Freguesia de Alcântara, incomodados com o facto de muitos dos utentes vestirem a mesma roupa imunda depois do banho, pediram roupas, arranjaram máquinas de lavar, e montaram um esquema de lavagem e entrega de vestuário a quem precisava. Um trabalho nobre. Entretanto, Vítor morreu, Rosa foi reformada, e quem continua esse trabalho é (outro) Vítor e Amélia, os novos funcionários do balneário.

Vítor garante que é preciso ter estômago para este trabalho. Porque desfilam por ali histórias que magoam a mais empedernida das criaturas. Também afiança que nestes três anos tem visto aumentar o número de gente sem eira nem beira. «Todos os dias há caras novas, sabe? E quando os vejo a arrastarem malas de viagem grandes, como se tivessem acabado de chegar do aeroporto, já sei que são mais uns que foram despejados de casa e que estão à deriva.»

Amélia encolhe os ombros, sabe que a vida não está para graças. E confessa que o que mais lhe dói é ver a miséria em que vivem as crianças e os velhos. «Nós aqui fazemos o que podemos, não é? E ficamos muito contentes quando há casos de sucesso. Como o do João, pai de quatro filhos, que estava desempregado, ele e a mulher. Ele vinha cá, arranjava-se muito bem arranjadinho e lá ia à procura de emprego. Felizmente conseguiu. As pessoas às vezes saem daqui mais confiantes. Basta um banho e uma roupa nova e… parece que há qualquer coisa que muda.»

E há. Chama-se devolução da dignidade. Às vezes é só o que é preciso. Na maior parte dos casos, porém, não é o suficiente.

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7.ª Estação: Jesus cai pela segunda vez

Na sala de paredes brancas e cadeiras dispostas em círculo, a psicóloga Ana Sousa está de pé e fala para uma audiência de desempregados que frequentam o Brevet OP, da Oficina de Psicologia (http://oficinadepsicologia.com). Usa cartões onde estão escritos sentimentos, para que os participantes os organizem por grau. «Zangado», «Aterrado», «Angustiado», «Contente», «Feliz». As expressões mudam sempre que se fala dos sentimentos negativos, como se todos eles estivessem ainda tão impressos na carne de cada um dos presentes que se torna impossível disfarçar.

Ana Sousa, a psicóloga encarregue deste grupo, explica o que é, afinal, o Brevet OP: «É uma breve terapia de orientação prática para quem está a passar por uma situação de desemprego. Achámos que, com o extraordinário número de desempregados, era importante ter algo direcionado para esta população. São quatro meses, cinquenta sessões, das quais 16 são individuais e 34 em grupo. O objetivo é trabalhar a desmotivação, a desesperança e a desorganização em que nos chegam. As pessoas entram cá com grandes níveis de ansiedade, baixa autoestima e a sensação de que deixaram de ter controlo nas suas vidas. E saem com uma perspetiva completamente diferente. Saem com o brevet , para poderem voar.»

Humberto tem 62 anos e é engenheiro. Foi apanhado de surpresa pelo despedimento coletivo. Estava há 12 anos na empresa e nem o facto de terem sido muitos a sair lhe diminuiu a amargura: «Trabalho desde sempre, desde que me conheço. Não sei viver sem trabalhar. Fui-me abaixo e procurei logo estratégias para não me deixar cair em depressão. Tive conhecimento desta terapia, específica para desempregados, e não hesitei. E excedeu muito as minhas expetativas. Posso dizer-lhe que foi o melhor que fiz. Sofria de um mal que é muito comum, que é a procrastinação. Adiava o envio de currículos, adiava a procura ativa de emprego. Por medo de ser rejeitado. Depois da terapia perdi o medo. E agora estou em vias de ir para Angola trabalhar!»

É o único homem do grupo, o segundo grupo a iniciar esta terapia experimental. Ana Sousa explica que as mulheres têm menos dificuldade em procurar apoio. Os homens, muitos homens, ainda se regem pelo princípio de que um homem não chora, logo, um homem não pede ajuda. Humberto não se inibiu por ser o único, no meio de mulheres. Só queria acalmar a tristeza que lhe ia dentro. E assegura que conseguiu. A psicóloga, de resto, não podia estar mais satisfeita com os resultados: «São muito animadores. Porque os dois principais objetivos do programa têm sido cumpridos: melhorar a qualidade de vida das pessoas no desemprego e resolver a sintomatologia depressiva e ansiosa. As pessoas saem daqui com ferramentas muito úteis para a vida difícil que vão encontrar lá fora.»

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8.ª Estação: Jesus encontra as mulheres de Jerusalém

Choravam por Ele, as mulheres de Jerusalém. Jesus, ao vê-las em pranto, disse: « Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai antes por vós mesmas e por vossos filhos. Porque dias hão-de vir em que se dirá: Bem-aventuradas as estéreis, e os ventres que não geraram, e os peitos que não amamentaram!»

Não se pode dizer que esses dias, tão negros, tenham chegado à vida de Vanda Caldeira, Sónia Conceição ou Laura Groz. Estão todas grávidas e nenhuma tem emprego ou previsão de um lugar no mercado de trabalho para breve. Ainda assim, nenhuma consegue dizer que preferia não estar grávida porque qualquer uma das três está já enlevada pela sua condição.

Vanda Caldeira tem 36 anos e é formada em Marketing. A sua vida é uma soma de estágios precários e um único emprego estável que durou um ano. Depois desse, só um lugar numa empresa, a substituir uma baixa médica. «Durou um mês. Depois, inscrevi-me numa empresa de trabalho temporário só que descobri que estava grávida do meu primeiro filho. Foi em 2008.»

Quando o David fez um ano, a família partiu para os Estados Unidos, onde ficou dois anos: «O meu marido foi convidado para trabalhar numa empresa em Austin, no Texas. Mas em 2011 a empresa fechou portas e voltámos. Não arranjei trabalho e em Setembro de 2012 descobri que estava novamente grávida. Claro que ninguém mais me deu trabalho.»

Vanda põe as mãos na barriga e sonha com o seu rapaz, Eduardo ou talvez Gil, ainda não está decidido. E teme pelo futuro, seu e dele, claro que sim. «Estou grávida, já tenho um filho, não tenho vencimento… e tenho 36 anos. Estou a fazer um curso de formação de formadores, tenho umas ideias, que talvez resultem. Talvez…»

Sónia Conceição também tem 36 anos mas o Santiago será o primeiro filho. É licenciada em Contabilidade e Auditoria e, mal terminou o curso, arranjou logo trabalho num gabinete de contabilidade. Um dia, sem que nada o fizesse prever, a empresa fechou. Esteve um ano desempregada. Seguiu-se um trabalho temporário e voltou a ficar sem emprego.

Entretanto, engravidou. Uma gravidez não planeada, mas Sónia, que queria ser mãe e já estava com 36 anos, achou que era melhor não virar as costas ao destino. E, claro, todas as entrevistas de emprego terminavam em nada, mal assumia a sua condição de futura mãe. «Estou a receber do fundo de desemprego e sei que, se estiver muito aflita, tenho o apoio da minha família. Mas é assustador. Daqui a pouco estou com 37 anos e parece que para o mercado de trabalho já se é velho aos 37. Depois do bebé nascer terei de procurar, mesmo que não seja na minha área. Vale tudo, para lhe proporcionar uma vida em condições. Talvez não seja tão mau como estou a prever.» Talvez.

Laura Groz, 24 anos, tem apenas algumas cadeiras pendentes para terminar a licenciatura em Comunicação Empresarial. Já teve muitos trabalhos, nenhum na sua área. Num café, num call-center , no McDonald”s. «Soube que estava grávida em setembro. Não foi planeado. Estava desempregada e à procura de emprego na minha área há um ano. Depois, comecei a tentar em todas as áreas. Nada. Felizmente, o meu namorado trabalha. E a família ajuda. Senão… não sei o que seria de nós.»

O Miguel vai nascer em Maio e a mãe está naturalmente apreensiva com os dias vindouros. Talvez saiam do país, em busca de melhor vida. Talvez apareça um emprego. Talvez a crise abrande. Talvez a economia acorde. Talvez o mercado a integre. Talvez. Para as três grávidas no desemprego é esta a palavra que se destaca, mais do que qualquer outra: talvez.

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9.ª Estação: Terceira queda de Jesus

O encerramento da sua fábrica têxtil, na freguesia de Sangalhos (concelho de Anadia) passou em horário nobre, em muitas televisões portuguesas. A SIC fez a reportagem, integrada na série Momentos de Mudança, e muitos foram os que se comoveram com o drama vivido por Vítor Rita, obrigado a fechar a fábrica erguida pelo pai, por falta de trabalho.

Porém, a comoção de quem está sentado no sofá, vendo desfilar tragédias alheias no pequeno ecrã, não enche barrigas nem paga as contas. E Vítor, que na reportagem chegou a afirmar que não se imaginava a sair do país em busca de melhor vida, teve de engolir as palavras como quem devora sapos. Sem conseguir arranjar emprego, foi forçado a partir: «Tenho um casal amigo emigrado na Alemanha e foram eles que me arranjaram trabalho. Estou há quase um ano a viver longe do meu país. Fechei a fábrica a 8 de março de 2012. Parti para Hamburgo no dia 8 de maio.»

Deixou a mulher e os dois filhos, a Mariana com 14 anos e o Francisco com 11. E, de cada vez que o repete, não contém as lágrimas. Vítor, 48 anos, é um homem de família. Sempre foi. E estar longe de casa mata-o devagarinho: «Há pessoas que levam esta situação de outra maneira. Suportam melhor. Eu não consigo. Para mim é um tormento estar longe da minha família. É uma dor inimaginável. Por isso, a minha vida em Hamburgo é casa-trabalho, trabalho-casa. Mais nada. Eu não vivo. Sobrevivo.»

Trabalha no restaurante de um português que é mais do que um restaurante. É uma fábrica. Mas de sucesso: «Ao fim de semana servimos cerca de mil refeições. É uma loucura. Nem sabia que podia existir um restaurante assim. Eu trabalho no bar. Esfalfo-me. Mas ganho três vezes mais do que ganhava quando era o dono da fábrica, em Portugal.»

Divide um apartamento com outro português, um rapaz de 20 anos. E mata saudades da família pelo Skype. Talvez sejam poucos os dias em que não chora os dois mil e tal quilómetros que o separam daqueles que ama. «A minha mulher tem uma doença crónica, esclerose múltipla, e tem sido uma heroína por aguentar tudo sem mim. Foi ela que me incentivou a vir, porque percebeu que em Portugal não tinha solução. É uma grande mulher…» E assim fica, de novo, em silêncio. A engolir esse enorme sapo que não há meio de lhe passar da garganta.

Do futuro nada sabe. Afiança que deixou de fazer planos. Limita-se a viver o hoje. «Gostava que a minha família viesse ter comigo. Mas tenho medo, sobretudo pela Mariana, que é uma adolescente, e para quem esse corte com as raízes pode não ser bom. Por outro lado, que futuro podem eles ter em Portugal? Que futuro? E eu? Como posso pensar em voltar se não há lá nada para mim? Tenho 48 anos… O futuro? Já só vivo o presente.» Um presente feito de distância, solidão e uma profunda tristeza.

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10.ª Estação: Jesus é despojado das suas vestes

As molduras que exibiam sorrisos já desapareceram das paredes. Estão embrulhadas em jornal, arrumadas em caixotes de cartão. A metáfora perfeita para os tempos negros que se têm vivido naquela casa: sorrisos guardados em caixotes. À espera de melhores dias para voltarem a sorrir.

Nuno Medeiros tem 36 anos e está vestido com um fato de treino. Retira candeeiros, cortinados, eletrodomésticos e enfia tudo em caixas. Pede desculpa pelo caos, ao mesmo tempo que desmantela a casa. Naquele terceiro andar da Moita, quatro vidas são empacotadas, lentamente. Nuno tem de entregar a casa ao banco até ao final do mês. A casa que comprou mas que deixou de conseguir pagar. É casado e tem dois filhos, um com 15 e o outro com 9 anos. E tem uma tristeza tatuada no rosto, no corpo todo: «Eu e a minha mulher trabalhávamos ambos num grande grupo. Comecei como vigilante e fui subindo de posto até ficar como responsável de secção. Foi o meu mal.»

O mal de Nuno foi ter subido na hierarquia da empresa. Foi ter um ordenado fixo ao final do mês. Foi ter achado que tinha uma segurança que lhe permitia melhorar, crescer um bocadinho. Quis comprar uma casa com mais um quarto, para que cada filho tivesse o seu. Não foi uma moradia com piscina ou um duplex com vista de mar. Foi um apartamento, também na Moita, apenas com mais um quarto. Foi a sua extravagância. A sua loucura. «Caí na asneira de dar esse passo sem antes ter vendido a casa que tinha. A imobiliária deu-nos dois anos para vendermos a nossa casa e garantiu que era mais do que suficiente. Tudo foi facilitado em termos de créditos, durante esse tempo não se pagava juros, e eu acreditei que ia correr tudo bem.»

Não correu. Já lá vão quatro anos e a casa não foi vendida. De repente, Nuno Medeiros e a mulher tinham duas casas para pagar, um carro, mais as despesas normais do dia a dia. Entretanto, dispararam os juros. E as despesas fixas duplicaram. O casal sentia-se estrangular. Foi então que começou o desvario: «Recorri aos créditos fáceis. Foi aí que me enterrei de vez. Quando dei por mim estava engolido por créditos que contraía para pagar umas dívidas e que, claro, se transformavam em mais dívidas. É uma bola de neve que cresce sem que a gente dê conta. Comecei a não conseguir pagar nada. Já quase não dava para comer.»

A vida tornou-se um inferno. Não havia dia em que não recebessem telefonemas das empresas de crédito a reclamarem os pagamentos. Ligavam para casa, para o emprego, ligavam de dia, ligavam de noite: «Era uma pressão brutal. Cada vez que o telefone tocava eu começava a transpirar. As pessoas à volta já todas sabiam. Porque eles cercavam-nos por todos os lados. Achei que enlouquecia.»

Mas o pior estava para vir. A crise agravou-se e a empresa onde Nuno e a mulher trabalhavam começou um processo de redução de pessoal. Foram despedidos os dois. No desemprego e com tantas dívidas feitas rolo compressor, tiveram de tomar uma decisão. Até porque os pais de Nuno, fiadores das casas, corriam sérios riscos de sofrer as consequências do incumprimento do casal. Em setembro de 2012 foram declarados insolventes. E agora há um administrador de insolvência que lhes diz o que fazer.

Nuno Medeiros e a família vão agora mudar-se para um apartamento arrendado, mais pequeno, a alguns quarteirões da casa que vão deixar para trás: «Custa-me ter tido a ilusão de que podia comprar uma casa para deixar aos meus filhos. Não passou de uma ilusão. No início custou-me muito ter de entregar a casa, mas agora já não dói. Sinceramente, já só sinto alívio. Os últimos tempos aqui foram tão sofridos, passei tantas noites sem dormir que já nem tenho amor à casa. Vamos recomeçar. Agora só quero arranjar um emprego, pagar as minhas dívidas, dar uma vida digna aos meus filhos. E poder dormir descansado.»

Há caixotes um pouco por todo o lado e a mudança está para breve. As molduras que exibiam sorrisos já desapareceram das paredes. Sorrisos guardados em caixotes. À espera de melhores dias para voltarem a sorrir.

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11.ª Estação: Jesus é pregado na cruz

A entrada do prédio, no bairro social do Rego, não tem porta digna desse nome. Está estilhaçada e não fecha. As escadas há muito que não veem limpeza e não há luz porque alguém levou todas as lâmpadas e até os globos que as protegiam. Sobraram os fios elétricos, alguns descarnados, à vista. Helena e José Costa Almeida vivem no 1.º esquerdo. Na porta em frente à sua vive uma enorme família de etnia cigana. Pai, mãe e nove filhos. Não há campainhas, nem para o lado esquerdo nem para o direito, ou melhor, existem apenas vestígios do que um dia terão sido as campainhas. A porta da família vizinha nem sequer tem fechadura, só um grande buraco redondo no seu lugar. Tudo foi destruído, como se houvesse uma raiva cega contra o prédio.

Helena tem 83 anos e sofre de Alzheimer. José leva um ano de avanço e, no olhar, só desesperança. Estão sentados um ao lado do outro, num sofá pequeno, e têm uma manta que cobre as pernas de ambos. José relata a vida que viveram e a que vivem agora e não são raras as vezes em que lhe treme o queixo, incapaz de segurar a tristeza. Ele foi mordomo e cozinheiro de uma família abastada, ela era criada de servir, na mesma casa. Viviam no chalé da família, no Estoril, com outros empregados. «A senhora dona Fernanda dizia-me ao domingo a ementa para toda a semana. Dois pratos ao almoço e um prato ao jantar. Havia muitos banquetes, jantares com muitos convidados. Eram muito bons senhores. Só tinham um senão: não faziam descontos para a caixa, para nós.»

E, assim, Helena e José têm uma reforma que, na soma dos dois, não chega a quinhentos euros. Viviam numa barraca, para os lados de Belém, mas há 13 anos que os meteram ali, numa casa camarária, num bairro habitado maioritariamente por ciganos. «Nunca tive nada contra os ciganos mas a nossa vida não é fácil. Partem tudo, gritam muito, estão sempre desavindos. Todos os dias dão pontapés na nossa porta. Vivemos num desassossego. Já fomos assaltados. Não saímos daqui para nada, a não ser para ir ali ao mercado comprar fruta e pão.»

Com eles vive o neto, filho de um único filho que se sumiu sem deixar rasto. O rapaz trabalha «com computadores», por turnos, a recibos verdes. «Ganha pouco, coitado, ainda no outro dia me perguntou se tinha dez euros para lhe emprestar.» Helena e José pagam 35 euros da casa, mais a luz, a água e o gás, fazem almoço e jantar para três. «Quando dá para comer comemos. Quando não dá… não comemos. Os medicamentos? Olhe, há um ano que não aviava um que tenho de tomar, para o inchaço das pernas. Mas agora tive mesmo de o comprar, que já quase não andava. O do coração corto-o ao meio, para durar mais. Vale-me a visita da menina Fernanda, uma das netas dos nossos patrões. Ela ajuda-nos muito. Se não fosse ela…»

Helena e José têm-se um ao outro, e mais nada. Em Setembro farão 54 anos de casados. Passam os dias ali, com a manta nas pernas, a ver as horas passar e a escutar as algazarras da vizinhança. Recordam os tempos áureos, em que viviam numa mansão, rodeados de tudo. Hoje estão cercados de nada. A ela, até as memórias se esboroam por entre os dedos. José olha a mulher, dá-lhe a mão e suspira profundamente: «Tomara que morrêssemos os dois no mesmo dia.»

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12.ª Estação: Jesus morre na cruz

Parece uma criança assustada e, ao mesmo tempo, consegue ter o olhar acre de quem já viveu o inimaginável. Chama-se Helena mas todos a tratam por Leninha. Mais um contraste. Diz «sou a Leninha» e, olhando-se para ela, o diminutivo carinhoso não bate certo com ela, com a vida que tem sido a sua, com as noites passadas ao relento, envolta em caixas de cartão abertas que lhe servem de cobertor.

Leninha tem 19 anos e uma vida errante. Um pai violento, uma mãe que fugiu às agressões e deixou tudo para trás (ela incluída), várias amas de má memória, um internamento num colégio para crianças em risco, uma tentativa de violação por parte do próprio progenitor. Leninha vive nas ruas do Porto desde 2011. À mercê dos elementos. Faça chuva, sol ou vento. Diz que é difícil dormir na rua, sem uma casa, sem uma cama, sem o conforto de um colchão, a frescura de uns lençóis lavados ou o calor de uma manta. Mas que, ainda assim, é preferível esse relento a dormir em sobressalto, sem saber o que lá vem.

À noite, recebe um prato quente de comida, do Coração na Rua, um grupo de amigos que se juntou com o objetivo de tornar «mais quentes» as noites nas ruas do Porto, levando comida e agasalhos e palavras de alento a quem vive sem abrigo. Leninha agarra-se a Elisabete, uma das voluntárias, e chama-lhe «minha mamã». E então volta a ser uma criança, uma menina grande à procura de colo. Quando se anicha no peito daquela mãe emprestada, os olhos semicerrados de um prazer momentâneo, o diminutivo Leninha volta a fazer todo o sentido.

Os voluntários dizem que são cada vez em maior número os sem-abrigo do Porto. Que há crianças a implorar por uma tigela de sopa. Cristina e Bárbara são mãe e filha, e iniciaram estas saídas para as ruas. Depois, o grupo foi-se alargando e agora são mais de cem. Cristina já viu de tudo: «No outro dia apareceu uma professora, no desemprego, com cinco filhos. Partiu-me o coração. Todos muito educados, muito agradecidos pela refeição quentinha, gente que jamais se imaginou numa situação destas. E depois, com a crise, a Segurança Social deixa de pagar às pensões para albergarem quem não tem casa. E lá vêm mais uns tantos para a rua. Vai piorar ainda mais.»

Leninha já quase não se imagina de outra maneira, que a sua vida não tem sido um mar de rosas. O chão é a sua cama, as casas abandonadas são o seu teto, os cartões as suas cobertas. Leninha. Nome de criança e olhar acre de mulher. Morta, simplesmente, para uma sociedade que insiste em desviar o olhar quando por ela passa.

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13.ª Estação: Jesus morto nos braços de sua mãe

Dentro do caixão segue mais um dos solitários de Lisboa. Um homem, sem nome, sem idade, sem história. À volta, ninguém. Ninguém para o chorar, para sentir a sua falta, ninguém para se despedir, naquele que é o derradeiro momento. No cortejo, além do padre e dos funcionários da funerária, só uma mulher. Em silêncio. Na mão, uma flor.

Ana Campos Reis tem 60 anos e há dez que acompanha os funerais de quem não tem ninguém. Foi essa a missão que pediu para si quando se ligou à Irmandade de São Roque. Já terá assistido a perto de mil funerais. Mil almas que partiram sem deixar saudades. Muitas vezes, são verdadeiras almas penadas de quem nada se sabe. Nem nome, nem idade, nem história. Como este homem que agora avança, devagarinho, até à última morada, no Cemitério de Benfica. Ao caminhar, uns passos atrás da urna, Ana Campos Reis pensa: «Quem és tu? Quem foste? De onde vieste? O que terá sido a tua vida para que tenhas acabado assim, só, sem vivalma que te venha chorar?» Depois, reza.

Quando são mortos com nome, a enfermeira da Santa Casa da Misericórdia procura a sua história, tenta saber quem eram, que vida foi a sua, se alguma vez lhe passaram pelas mãos, no seu trajeto de vida. «O que mais me dói são as crianças. Os bebés. Os fetos. Normalmente dou-lhes um nome. Teresa. João. Rita. Onde estão os teus pais? O que falhou para não estarem aqui, no teu último momento? Porque é que tiveste uma vida tão curta?»

Todos estes mortos solitários têm direito a uma oração, sentida, todos recebem uma rosa vermelha, todos têm a presença, fiel, de uma mulher que vive e viveu toda a vida com os olhos postos nos outros. Uma mulher de fé, apesar de toda a miséria e abandono a que já assistiu em mais de quarenta anos de trabalho na Misericórdia de Lisboa. Uma mulher de fé, apesar de ter perdido um filho, num acidente, em plena juventude. «Essa foi a mais aguda de todas as dores. E talvez seja por isso que é para mim tão importante estar aqui, nos funerais dos que não têm ninguém. Sinto-me sempre perto do meu filho, nestes momentos. Rezo por quem partiu mas rezo também por ele. É, de certo modo, uma forma de estarmos juntos outra vez.»

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14.ª Estação: Jesus é sepultado

Uns garantem que o caminho traçado pelo governo será a ruína de um país. Outros apostam que é esta a via certa. Há ainda os que se resignam, num conformismo dolente, gemendo que estas políticas são, afinal de contas, a única opção possível.

Para estes portugueses, descritos nas estações anteriores, a esperança é o que lhes resta. Para alguns, nem essa já subsiste. Muitos são apenas mortos-vivos, gente que perdeu tudo, a casa, o norte, a fé. A crise entrou-lhes pela vida adentro e arrastou-os até ao Calvário.

Para Jesus, o Calvário (em aramaico, Gólgota) foi o fim e o princípio. Foi no Calvário que foi crucificado e sepultado e foi do sepulcro que ressuscitou, ao terceiro dia. Resta saber se, depois da via-sacra que muitos portugueses estão a percorrer, haverá também lugar para a Ressurreição.

[Publicado originalmente na edição de 31 de março de 2013]