Queimar sutiãs ou dirigir jornais, a mesma luta

Notícias Magazine

Não, nem tudo está ainda como devia estar. O caminho é longo e duro e parece estar a levar mais tempo a ser percorrido do que esperavam as sufragistas do século xix ou as mulheres que queimaram sutiãs em Atlanta nos anos 1970. Nem todos os tetos de vidro se quebraram, para usar outro lugar-comum. Sim, estou a falar de igualdade, estou a falar de direitos das mulheres, estou a falar de temas que esta semana vieram à ordem do dia.

Vamos falar de algo que me é próximo: o despedimento das duas mulheres que estavam à frente de dois dos mais importantes jornais do mundo. Bem, tanto no caso do The New York Times como no caso do Le Monde nem sequer se pode chamar-lhes apenas jornais, já são conglomerados de informação online e offline, em papel e em multimédia. O ano passado tinha sido um ano interessante do ponto de vista de telhados de vidro, pelo menos na comunicação social. Duas mulheres, a americana Jill Abramson e a francesa Natalie Nougayrède, tinham quebrado esses telhados que impedem as mulheres do mundo de crescer e de ter como referência essas outras mulheres que os quebram.

Agora, tudo voltou à ordem tradicional das coisas. Ambas foram despedidas. E, nas explicações que se seguiram aos despedimentos – duros e rápidos – estavam explícitas questões financeiras, certo e lógico, já que o mundo dos media está em luta constante contra o défice que o destino lhe marcou. Em ambos os casos, também, esteve em cima da mesa – e isto interessa a quem tem a paixão da comunicação social – o embate entre o digital e o papel, entre o esforço que é preciso para que um funcione e as redações habituadas à velha maneira de fazer as coisas.

Mas a verdade é que em ambos os despedimentos estiveram também implícitas outras questões menos objetivas e que, segundo os zunzuns que saem sempre das redações – oh lugar de boatos e desinformação – foram tão causa das saídas como as primeiras. Dizia-se destas duas mulheres as mesmas coisas, o que é curioso tendo em conta as suas distâncias geográficas e culturais. Fala-se de demasiado autoritarismo, pouca relação com a redação, tomadas de decisões sem consultar os seus pares ou as suas bases…

Bem, talvez, afinal, Jill – 60 anos – e Natalie – 48 anos – sejam apenas ambas as faces de uma cultura que até admitiu a entrada das mulheres mas continua a tê-las mais nas bases do que no topo, e que, por isso, no caminho para a liderança acabaram por ir ganhando hábitos de liderança muito masculinizados – por mimetismo com os seus pares. Porque eu julgo não estar aqui a ser mais feminista do que as feministas se argumentar que estas questões nunca seriam levantadas se estivéssemos a falar de homens em vez de mulheres. Fossem ambas líderes masculinos e esses sinais seriam de virilidade e não de fraqueza.

É interessante verificar que se espera de uma liderança feminina exatamente o oposto do que se espera de uma liderança masculina. É claro que podemos sempre argumentar que na verdade o que interessa não é o que se é mas o que se parece. E que, provavelmente, Jill ou Natalie podiam até ser igualmente déspotas, mas se tivessem tido o parlapié suficiente para dourar a pílula até hoje estariam nos seus cargos. Enfim, nunca o saberemos na verdade, porque as redações têm muitas parecenças com conventos e idêntico nível de segredo.

[Publicado originalmente na edição de 25 de maio de 2014]