Portugueses que lutaram com Mandela

Um universitário que esteve na oposição ao regime, um padre que acolheu reuniões clandestinas, uma arquiteta que transformou a sala em universidade para negros. No ano em que se celebra o vigésimo aniversário da democracia na África do Sul, eis a história que estava por contar: a dos portugueses que lutaram contra o apartheid.

Nenhum outro lugar senão o Soweto, um subúrbio de madeira e zinco a vinte quilómetros de Joanesburgo, explica tão bem a história do fim do apartheid. É o berço dos maiores protestos e dos mais vee­mentes boicotes à política de segregação racial da África do Sul. É uma cidade negra e sempre foi uma cidade negra, mesmo quando os brancos mandavam no país. Hoje tem ruas com nomes de heróis da libertação africa­na, há vinte anos também tinha placas nas esquinas, mas eram todas quei­madas. «É aqui que se celebra agora a vida de Mandela mais do que se chora a sua morte. E foi aqui que o conheci », diz uma voz grossa, num português perfeito. «Nos anos em que lutávamos juntos contra o regime, escondíamos o nome das ruas, pois claro. Isso atrasava os serviços secretos quando eles apareciam para nos prender. Os vigias das primeiras casas davam sinal e tínhamos tempo para nos pirar por outro lado.»

Quem fala é Gilberto Martins, um português nascido em Joanesburgo que se juntou aos resistentes do ANC em 1982 para combater o apartheid. Hoje, é diretor-geral de infraestruturas no Ministério de Transportes sul-africano. Na clandestinidade, tinha nome britânico – Gilbert Maron – e, pelo menos que ele saiba, foi o único português que esteve na organização durante os anos da ditadura. «Começou tudo quando entrei na Universidade de Mitwatersrand, a única de Joanesburgo que recebia alunos negros e indianos.» Cada grupo racial tinha a sua associação de estudantes e, um dia, di­rigiu-se ao corpo de alunos africanos. «Disse-lhes que queria fazer uma equipa de hóquei em patins e que queria contar com eles. Per­guntaram-me se tinha a certeza dos problemas que podia ter por criar uma formação multirracial.  Respondi que tinha de ser, não havia brancos suficientes para formar uma boa equipa.»

A resistência portuguesa ao apartheid não foi regra, foi exceção. A comunidade portuguesa, em grande medida, não fazia ondas. Nem combatia o regime. A primeira vaga de imigrantes tinha chegado nos anos quarenta a sessenta e quase todos vinham da Ma­deira. A segunda chegou nos anos setenta, depois da independên­cia de Moçambique. Maria Vitória Pereira, uma escritora de Dur­ban que fez a sua tese de mestrado sobre a emigração portuguesa para a África do Sul, explica as coisas assim: «Os primeiros eram pessoas com um baixo nível educacional e nenhuma cultura polí­tica. Os segundos vinham refugiados das colónias, tinham perdido tudo o que tiveram. Vinham de contextos de grande vulnerabilida­de e o simples facto de ser brancos garantiu-lhes o poder.»

Gilberto, pelo contrário, começou a dar-se com o corpo de afri­canos da universidade, a frequentar reuniões, a ser convocado para encontros no Soweto. «Todas as semanas a polícia entrava nas instalações e prendia alguns estudantes. Eu era preso uma vez por mês mas, ao contrário dos meus colegas africanos, nun­ca fui torturado.» O pai, que tinha vindo de Leiria no início da dé­cada de cinquenta trabalhar para a construção civil, e a mãe, do­méstica, nunca desconfiaram de nada – já que o rapaz tinha mu­dado de casa. Mandela, já nesses anos, era um símbolo.

Gilberto passou a ser conhecido como Kaffir Boettie, amigo dos negros em africânder. A administração da universidade pediu-lhe para parar com a equipa multirracial porque estava a causar emba­raços à instituição. Recusou. «Era vigiado pela polícia e por isso nun­ca guardei quaisquer papéis do que decidíamos nas reuniões. Come­cei a ter um papel muito ativo na política desportiva do ANC porque a organização pensava que o desporto era uma das formas mais efi­cientes de combater o racismo. Tudo o que acordávamos no Soweto era por palavras, não podia haver registos.»

Em 1988, assumiu o cargo de secretário-geral de Natio­nal Sports Council, a estrutura que o ANC tinha criado para a política desportiva na África do Sul. «Sempre que uma equipa es­trangeira, fosse de râguebi, críquete ou futebol, vinha jogar ao país, organizávamos um protesto imenso para chamar a atenção do mundo. Depois começámos a fazer o mesmo com a Fórmula 1, até a Federação Internacional do Automóvel retirar a etapa da África do Sul. E convidávamos boxeurs negros, como o Moham­med Ali, para vir lutar ao Soweto. A ideia era boicotar toda a po­lítica africânder em todas as frentes.»

A libertação de Nelson Mandela em 1990 veio mudar tudo. Gilberto e o ANC sabiam que as coisas iam mudar, era apenas uma questão de tempo. O apartheid acabaria por cair em 1994, após 46 anos de segregação. «Depois da vitória nas eleições, Mandela reuniu com os quadros do ANC e disse-nos que íamos apoiar os Springboks no campeonato do mundo de râguebi.» A equipa nacional estava conotada com a ideologia africânder, nos últimos dez anos tinha sido um dos alvos preferenciais do National Sports Council. «Ficámos estupefactos, quase toda a gente discordou, mas o Mandela insistiu. Agora sabemos que foi aquela decisão que provavelmente evitou uma guerra civil na África do Sul. Estávamos tão habituados a lutar que demorá­mos a perceber que, depois do fim da ditadura, a verdadeira lu­ta era construir a paz.» Este foi o tema do filme Invictus, de Clint Eastwood.

 

Em meados da década de 1980, o padre Emanuel dos Passos abriu as portas da igreja em Durban para reuniões clandestinas de oposição ao apartheid.
Em meados da década de 1980, o padre Emanuel dos Passos abriu as portas da igreja em Durban para reuniões clandestinas de oposição ao apartheid.

A Igreja de São José fica mesmo no coração de Greyville, um bairro do centro de Durban – na província de Natal, à beira do Índico. É um edifício imponente, de estilo neoclássico mas com apontamentos góticos e barrocos. Foi construído em 1853 noutra zona da cidade e reedificado, pedra por pedra, pelos portugueses. Abriu portas em 1980 e desde então as missas são celebradas na língua de Camões. Na cerimónia de inauguração, o bispo da província de Natal, Dennis Hurley, virou-se para a as­sistência e perguntou durante a homilia: «E vocês, portugueses, pagam os salários justos aos vossos empregados negros? Tra­tam-nos como os irmãos que eles são aos olhos de Deus?»

As perguntas criaram desconforto e tinha sido o padre Emanuel dos Passos que as havia sugerido ao bispo Hurley. «Eu era pároco de Saint Antonhy’s mas, como era português, assumi também o co­mando da Igreja de São José», diz numa voz que não é mais do que um sussurro. «A comunidade portuguesa era muito fechada e, ao longo dos quatro anos que passei naquela paróquia, o meu esforço foi abrir a cabeça daquela gente. Mas, oh, que tarefa difícil.»

Emanuel dos Passos dirige hoje a igreja de Chatsworth, um subúrbio a trinta quilómetros de Durban habitado maioritaria­mente por indianos, minoritariamente por negros e por nenhuns brancos. Foi ali que foi parar depois de todos os problemas que teve com a polícia secreta do apartheid, no final dos anos oiten­ta. «É que, sabe, eu nunca me conformei com a segregação e ten­tei sempre lutar contra ela. Claro que isso teve as suas consequên­cias.» Os pais eram madeirenses que viajavam para Moçambique de barco. A mãe vinha grávida dele e o rapaz decidiu antecipar o nascimento quando o navio atracou em Durban. Já não saíram dali. Instalaram-se no meio da comunidade indiana e racismo era uma palavra desconhecida.

Quando assumiu a liderança em São José, o padre tentou abrir a administração da igreja às outras raças, convocando dois in­dianos para o conselho paroquial. «E foi aí que a coisa reben­tou», diz. «O então presidente virou-se para mim e disse-me que não queria germes de caril numa igreja de brancos e o resto do conselho calou-se, dando-lhe apoio. Nessa altura pedi para vol­tar a Saint Antonhy’s, onde poderia trabalhar contra a segre­gação.»

 

O cônsul Elias de Sousa conta que os portugueses eram brancos de segunda, «por isso ninguém fazia ondas».
O cônsul Elias de Sousa conta que os portugueses eram brancos de segunda, «por isso ninguém fazia ondas».

Elias de Sousa, cônsul honorário de Portugal em Durban, não acredita que os portugueses fossem racistas, diz que ti­nham muito medo de ser expulsos da África do Sul. «Sabe, éramos uma espécie de brancos de segunda, menos educa­dos e menos poderosos do que os africânders e os ingleses. E éramos emigrantes, sabíamos que se afrontássemos o apar­theid poderíamos ser banidos. Ninguém queria isso.»

Hoje existem 500 mil portu­gueses na África do Sul, a maio­ria em Joanesburgo, e perto de dez mil em Durban. É uma co­munidade que mantém sóli­das as tradições portuguesas. Quando se entra na Associação Portuguesa de Natal, o clube lusófono da região, encontra-se comi­da portuguesa e todas as semanas há ainda ensaios do eterno ran­cho folclórico. A diferença é que nos anos do apartheid só entravam portugueses e hoje há uma festa de uma empresa sul-africana – e o cenário é multirracial.

 

Maria Vitória Pereira deposita uma flor na campa do filho.
A escritora Maria Vitória Pereira deposita uma flor na campa do filho.

A escritora Maria Vitória Pereira acredita que desde a instau­ração da democracia há uma abertura maior dos portugueses da África do Sul. «Mas isso tem mais que ver com as segundas e ter­ceiras gerações, que se misturam plenamente. Porque para mui­tos portugueses que viveram aqui, no apartheid, ainda há um cer­to saudosismo dos privilégios perdidos.» A Igreja de São José, que costuma frequentar, tem hoje missas em inglês. E há um cemitério de portugueses onde está sepultado um dos filhos de Vitória. O ce­mitério também acolhe campas de ingleses e indianos. «As coisas estão a mudar, talvez não tão rá­pido como gostaríamos.»

Quando voltou a Saint Antonhy’s, o padre Passos foi contactado por elementos do ANC. «Queriam fazer aqui os ve­lórios dos que eram mortos na lu­ta contra o apartheid e eu acedi.» A sua paróquia tornou-se um dos principais centros de reunião da oposição. «Pedi­ram-me se podiam usar as salas de reunião pa­ra planear as ações de resistência. Concordei, res­salvando que não podiam ser organizadas a par­tir dali quaisquer atividades violentas.» As leis do apartheid não permitiam aos serviços secretos en­trar em igrejas brancas. Saint Antonhy’s tornou–se um ponto seguro para os rebeldes.

«Mais tarde, vim a saber que tinha os telefones sob escuta, mas eu não participava nas reuniões, por isso não sabia o que se passava. Essa era a única maneira de estar seguro.» Emanuel dos Passos ti­nha consciência de que em dias de velório de mili­tantes do ANC a igreja estava cheia de agentes de au­toridade, «mas nessas alturas não se discutiam as coisas importantes. Para a polícia africânder, eu era suspeito, mas nunca tiveram nada com que pegar».

Mas em 1986 acabou por ser detido por dar cobertura aos rebeldes «Levaram-me pa­ra a esquadra e questionaram-me sobre tudo o que sabia do ANC. Eu não sabia assim tanto, mas também não disse nada.» No próprio dia foi falar com o bispo e decidiram que era me­lhor Emanuel dos Passos sair por uns tempos da África do Sul. Passou um ano como missionário no Brasil e quando regressou foi trabalhar com a comunidade indiana e negra em Chatsworth. Nunca voltou à igreja portuguesa de São José.

 

Ester Ferreira Lee dava aulas na Universidade de Durban apenas a brancos. Por isso, decidiu ensinar negros, mestiços e indianos em sua casa.
Ester Ferreira Lee dava aulas na Universidade de Durban apenas a brancos. Por isso, decidiu ensinar negros, mestiços e indianos em sua casa.

A Universidade de Durban fica muito per­to de Cato Manor, um bairro de lata que os afri­cânders tentaram eliminar nos anos sessenta, o que deu origem aos maiores motins de sempre na cidade. Vários brancos fo­ram assassinados e mutila­dos. Hoje, a zona continua a acolher centenas de famílias negras e indianas. É no al­to desta colina que vive Ester Ferreira Lee, uma portugue­sa nascida em Moçambique e casada com um arquiteto in­glês. «Já fui assaltada várias vezes, na última vez até me bateram. Mas daqui só saio para o cemitério», diz, do al­to dos seus 77 anos.

A casa onde vive é património nacional e uma das mais antigas vivendas da cidade. Um exemplo perfeito de arquitetura colonial, com telhados baixos, varandas e grandes janelas, jardins luxuo­sos e fontes de pedra. «Mudámo-nos para aqui em 1967 e a casa era tão grande que a dividíamos com outro arquiteto, o professor Lewcock, que também dava au­las na universidade como eu e o meu marido.» Ester tinha vindo para Durban nos anos cinquenta para tirar arquitetura na universi­dade sul-africana. Os pais tinham feito fortuna na construção civil em Lourenço Marques e a rapari­ga queria uma boa educação. Ha­via apenas cinco portugueses na universidade e ela era a única mu­lher. «Foi ali que conheci o Bryan Lee. Casámo-nos no fim do cur­so e a nossa festa tinha gente de todas as raças. Nunca acreditei na segregação.»

Ester tinha amigas negras e os seus filhos também. «Vi­nham os miúdos de outras raças dormir cá a casa e isso nunca foi estranho para nós, mas era es­tranho para a polícia.» Lembra–se de uma vez ir à praia com uma amiga indiana e a polícia lhes dizer que aquela era praia de brancos. «E eu perguntei-lhes se eles sabiam o nome daquele oceano. Era o Índico, a minha amiga tinha mais direito a estar ali do que qualquer um de nós.»

A Universidade de Durban tinha professores brancos para alunos brancos e professores negros ou indianos para as outras raças. «Aqui em casa éramos todos muito liberais e todos dávamos aulas. Conhe­cíamos os professores indianos e negros e sabíamos que muitos de­les tinham conhecimentos muito limitados, porque o regime não lhes tinha dado oportunidade de se especializar.» Além disso, africanos e indianos não tinham acesso a todos os cursos. Foi en­tão que nasceu uma ideia.

Contactaram os professores que sabiam não ser adeptos do apartheid e propuseram-lhes dar aulas nos salões de sua casa a alu­nos de todas as raças. «Aldrabá­mos o apartheid», e Ester desman­cha-se numa gargalhada que é uma delícia. Durante uma déca­da, a vivenda onde viviam tinha uma sala de arquitetura, outra de medicina e mais uma de serviço social. Africanos e indianos atra­vessavam o Cato Manor ao pôr do Sol e ficavam ali até de madruga­da, sedentos de aprender. «Eram tão mais ávidos de conhecimento do que os nossos alunos brancos», recorda ela. «Muitos deles torna­ram-se pessoas reputadas nas su­as áreas e hoje estão a construir a nova África do Sul.»

Ester tem uma teoria: a sua ca­sa estava fadada para se tornar uma universidade livre. «É que ela foi frequentada por Fernan­do Pessoa, só podia ser uma casa de conhecimento.» O poeta por­tuguês passou a maior parte da juventude em Durban e foi lá que escreveu os primeiros poemas. O padrasto, cônsul na cidade, ti­nha como melhor amigo um em­presário chamado Trevean, que era o proprietário daquela ca­sa. Os saraus e as tertúlias eram frequentes, Pessoa há-de ter jan­tado ali muitas vezes e brincado naqueles jardins.

A casa hoje continua a ter pa­péis espalhados por todo o la­do, uma biblioteca estupenda. E Ester deixa-se levar pelas me­mórias. «Passei uns bons anos sem dormir grande coisa, mas foi por uma boa causa.» É que  além de dar aulas de manhã e à noite, tomava conta das crianças à tarde. «E como naqueles anos do apartheid um homem branco não podia andar de carro sozinho com uma mulher negra, todas as noites tinha de ir com um professor de medicina levar uma alu­na a casa, porque ela morava longe.» Foi essa mulher que a aten­deu, há dias, num hospital de Durban, quando Ester caiu e par­tiu uma perna.