
Há gestos que são tudo, e explico-me lá mais para a frente. Espanha está emocionada com a morte de um seu velho político. Nós e ela estamos demasiado de costas para eu me permitir escrever sobre alguém cuja ação não foi connosco e já se passou há tanto tempo – a menos que um gesto claro e grande me ajude a explicar ao que venho. Morreu, nesta semana, Adolfo Suárez, chefe do governo espanhol entre 1976 e 1981. Ele chegara ao governo sem ser pela democracia. O jovem rei Juan Carlos, em 1976, escolheu-o para fazer a transição do franquismo e nas primeiras eleições livres, no ano seguinte, Suárez formou governo sem maioria.
Ele acalmou um país ainda motivado pela Guerra Civil de quarenta anos antes, legalizou partidos políticos e sindicatos. Coisas simples, e que não existindo são tão absurdas, aconteceram no mandato de Suárez. Numa entrevista, este pediu ao jornalista para não lhe fazer uma pergunta sobre a eventual legalização do divórcio. Explicou: «Se a pergunta for feita, o Opus Dei fará um escarcéu e a lei será atrasada…» Adolfo Suárez era um homem vindo da direita, franquista e do Opus Dei, e da direita continuava mas engajara-se na necessidade de levar Espanha para a democracia. Tecia os avanços necessários com todo o cuidado de não cortar pontes, mas avançando. O jornalista retirou a pergunta e, de facto, no mandato de Suárez o divórcio foi legalizado.
Mas chega de fazer o que eu disse que não faria, não é aqui lugar de recordar a história alheia, é tempo de ir para histórias, pequenos gestos. Gosto destes sempre quando são grandes. Como o daquele comerciante londrino que durante os bombardeamentos nazis na Segunda Guerra Mundial pôs, na sua montra estilhaçada, este anúncio: «Mais abertos do que nunca!» E gosto particularmente dos pequenos gestos grandes praticados pelos grandes, pois estes quase sempre se acham desobrigados de os fazer. A mãe de Isabel II, para continuarmos na Londres bombardeada pelas V-2, insistiu e ficou no Palácio de Windsor quando os conselheiros a aconselharam, e até disseram ser a obrigação da rainha, fugir para o campo e das bombas nazis. E chegamos, enfim, ao pequeno gesto de Adolfo Suárez.
E que fez ele? Ficou sentado. A 23 de fevereiro de 1981, estava ele sentado na primeira fila parlamentar que cabia ao governo, no Palácio do Congresso, em Madrid. Ao lado estava o seu vice–primeiro-ministro, o velho general Gutiérrez Mellado, e a coxia, que subia pelo hemiciclo do Parlamento. Discutia-se a manutenção do governo, que estava por um fio. O presidente da sessão dera a palavra ao obscuro deputado 114, cujo nome não entrou na História, e muito menos na história, quando um burburinho veio da coxia, Suárez olhou para trás, mas já de frente havia também invasores. Na tribuna apareceu um bigodudo de tricórnio, o tenente-coronel Antonio Tejero, que de pistola em punho mandou toda a gente calar-se.
Estupefação entre os deputados. Gutiérrez Mellado reagiu à general, saltou para o corredor fronteiro da sala e foi pedir meças aos insurretos. Estes não respeitaram nem a patente nem os cabelos brancos do velho general e empurraram-no. Suárez, que estava mais próximo, agarrou no braço do seu vice-primeiro-ministro e fê-lo sentar-se ao seu lado. Até aqui as reações gerais eram, digamos, mecânicas. Foi, então, por causa dessa tensão inicial que os soldados deram tiros para o ar, tal como Tejero, que entretanto gritou: «Todos deitados!» Os deputados eram, já vimos, pelo menos 114 e todos se deitaram. Aquilo deixou de ser o parlamento de representantes do povo e passou a ser uma loja de mobiliário: só se viam cadeiras vazias e tampos protetores…
Todos agachados? Não. Três homens valentes ficaram sentados. O líder comunista Santiago Carrillo, o general Gutiérrez Mellado e Adolfo Suárez. Quando morreram Carrillo e Gutiérrez Mellado, tirei-lhes o chapéu em duas crónicas. Volto a fazê-lo com Suárez. Quando voto, não tenho votado nem em comunistas nem à direita. Mas quando admiro, voto em homens.