
A moda é por definição passageira e eu, confesso, prefiro ir a conduzir – eis a primeira incompatibilidade. Se ao menos eu tivesse gostinho para acasalar cores, essa independência poderia levar-me à originalidade que cunha os estilistas. Acontece, porém, que cheguei a ir a um primeiro dia de emprego com sapatos desemparelhados. Ainda por cima levemente, um preto suave e outro castanho escuro – nem deu para parecer provocação, o que podia ser um indício de certo dandismo. Mas não, viu-se que não reparei no momento de calçar. Que elegância é essa, se um tipo nem repara na cor dos sapatos? O meu drama com a moda nem é o mau gosto, é a notória inexistência de gosto.
Ora, o vazio atrai. Então, com a minha falta de gosto eu podia publicar um catálogo outono-inverno do porque sou assim. Aquilo que devia ter-me chegado pelas vias comuns – ter nascido para a moda ou ter sido educado para ela – acontece-me por razões que nada têm que ver com o assunto. Para dar um exemplo, volto aos sapatos: tenho uma fixação por uns (já falei deles aqui, noutra crónica), os spectator, os sapatos da minha vida. De laço ou de pala, são castanhos ou pretos mas com o dorso branco, de pele mais suave – sapatos de duas cores. São sapatos de quem capricha a vestir-se e gosta de ser notado, o que faz contraste comigo, informal e tímido. Garoto tive uns assim, preto e branco, de pala. Não fui publicamente feliz com eles, agravaram a minha falta de jeito para combinar roupa e incitavam os outros a dar-me a atenção que eu não desejava. E, no entanto, eu amava aqueles sapatos. Depois do primeiro dia em que andei com eles, envergonhado, remeti-os para o meu quarto, usando-os só para dar corda à imaginação. A olhar para eles, fui gangster de Chicago e músico malandro em Nova Orleães. Usei-os na minha infância, quer dizer, calcei-os para sempre apesar do pouco uso das solas. Há pouco anos, os spectator voltaram à moda. Se comprei um par e às vezes os ponho, no quarto, não o digo aqui – os noticiários estão cheios de hackers que expõem fotos íntimas das pessoas.
Outra coisa de que gosto: golas de camisa notórias. A explicação pode vexar-me. Quando o quadro é mau, capricha-se na moldura… Mas tenho ainda outra explicação: Hopalong Cassidy, o cowboy. Um dia, posso jurar, vi-o defrontar o bandido e ter tempo para tudo. De tocaia, o bandido fez mira e disparou, ainda o meu herói se julgava, tirando os coiotes e as cascavéis, o único ser vivo naquela mata de catos saguaro. Pois bem, Hopalong (para vocês, Sr. Cassidy), adivinhou o perigo, parou o cavalo, calculou a trajetória da bala, sacou do Colt e, sem mesmo apontar, deu um tiro no tiro inimigo. Um tiro no tiro marca uma criança. Isto durou, vá lá, dois ou três quadradinhos numa banda desenhada. Deu ainda para ver o lenço de pescoço do meu herói texano, emoldurado por uma portentosa gola da camisa.
Décadas depois, passei a ir frequentemente aos Estados Unidos, regressando sempre com camisas que se abrem como a Ópera de Sydney, como sobrancelhas espantadas. Lenço de pescoço, nunca, pois seguia sem o saber o conselho de Coco Chanel: «Antes de sair, olhe-se ao espelho e tire um acessório» – como não uso nenhum, começo por não comprar lenços de pescoço. Camisas de gola fantástica são às dezenas. Mas, lá está, tão fantásticas que nunca as uso, por pudor. Já vos falei, creio, de ser informal e tímido.
Este meu passado fashion e as suas repercussões modernas levou–me também a uma gratidão enorme: ter passado a infância com livros de cowboys e não a ler quadradinhos de tempos shakespearianos. O drama, a que passei uma tangente, é este: e se eu me tivesse vidrado em golas Tudor? Vocês sabem, aqueles colarinhos bufantes, de leque, cobrindo o pescoço, de tecidos ricos plissados, como mostram tantos quadros de Rubens, com um burguês rico com uma espécie de harmónio ao pescoço… Quer dizer, eu agora passava a ir a Londres e Amesterdão e voltava com malas de camisas de linho ou seda encimadas por golas Tudor. Está bem, não as usava, era só para resolver um episódio marcante de infância. Mas, mandado parar na alfândega, que explicação dava?
Publicado originalmente na edição de 19 de outubro de 2014