O dia seguinte

Notícias Magazine

O rebuliço dos primos a entrar, na excitação de começar as brincadeiras o mais rapidamente possível, das mães na cozinha, à volta do bacalhau e das couves, dos pais a contar histórias e a rir alto: são esses sons preciosos que carrego comigo sempre que se acerca mais um Natal.

Não sei se sou música porque sempre fui especialmente sensível aos sons, à banda sonora que me enforma a vida, ou se foram esses sons que me foram encaminhando para a música, mas os momen­tos mais fortemente marcados na minha memória têm sempre um ou mais sons a ele associados.

Ironicamente, durante alguns anos, Natal era sinónimo de oti­te. Não havia véspera natalícia que não fosse passada nas urgências de um hospital. Certa vez, a última vez que me aconteceu, estava com o ouvido colado ao gira-discos, com o som no máximo e não conse­guia ouvir quase nada. Depois, só me lembro das luzes brancas e frias das Urgências e da minha mãe a tirar-me a temperatura com a mão e a perguntar-me como me sentia.

Felizmente, a certa altura, as otites deixaram de aparecer e o ca­minho ficou livre para todas as brincadeiras que eu e os meus primos pudéssemos imaginar. Antes da meia-noite, brincávamos com o que tí­nhamos à mão, sendo que, passados alguns momentos com os “melho­res” brinquedos de cada um, rapidamente nos voltávamos paraas almofadas do sofá-cama do meu primo Tiago, com as quais constru­íamos uma espécie de escorrega, primeiro, e de esconderijo, depois. Ou para os bonecos da minha prima Sónia, uma colecção quase completa das figuras do Dartacão e os 3 Moscãoteiros, com as quais construíamos histórias cheias de peripécias e reviravoltas. Lá em casa, havia pega monstros, barbies, traga-bolas e pinipons à discrição.

Quando o relógio batia as 12 badaladas, os nossos pais pediam que esperássemos num quarto, sem sair, porque o Pai Natal ia deixar as prendas na árvore de Natal, na sala. Não me lembro de acreditar no Pai Natal, mas fingia que sim, só para não fazer a desfeita aos adul­tos. Quando nos abriam a porta do quarto, corríamos para a árvore e desatávamos a abrir as prendas, rasgando excitadamente papel de embrulho com que os nossos pais, tios e avós haviam embrulhado as suas ofertas. Entre pequenos póneis, uma roupa nova para a Barbie, um livro do Tio Patinhas ou um jogo de tabuleiro, o resto da noite era passado a testar a resistência dos novos brinquedos.

No final, já quando o sono começava a chegar, convidado pelo cansaço que a brincadeira sem parar e o bacalhau cozido haviam trazido, terminávamos a noite a ver um dos filmes de Natal que a RTP costumava passar.

No dia seguinte, as brincadeiras recomeçavam e estendiam–se pela tarde adentro. O estômago começava a pesar com tantos doces e petiscos, não obstante o corrupio. Os homens acabavam a tarde a jogar às cartas, batendo com os nós dos dedos na mesa com veemência sonora sempre que tinham uma cartada forte. Discutia-se política e futebol.

Depois, foi-se crescendo e o núcleo familiar foi ficando cada vez menor e mais adulto. A brincadeira e as gargalhadas foram-se ex­tinguindo de ano para ano. Ainda perdura a sensação de conforto que só o encontro com a nossa família consegue fazer nascer.

A excitação de menino foi substituída pela serenidade das velas a bruxulear, do azevinho pousado na mesa, das mãos que se vão aque­cendo junto do calorífero. Lá fora, o mundo continua frio, desanima­dor, difícil de compreender. Nada muda no Natal, por mais que finjamos.

A mudança nunca se opera por marcação de calendário e muito menos por rotina ou tradição. Mas aqueles momentos, de hoje e de ontem, confortam, aquecem o coração, ajudam a refor­çar laços preciosos. E, quando se extinguem, findo o 25, perma­necem, dando-nos a força que precisamos para enfrentar o 26.

Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia

[Publicado originalmente na edição de 21 de dezembro de 2014]