Nunca gostei de futebol. Essa é uma das coisas que tenho bem claras na minha cabeça, até me lembro de quando comecei a nunca gostar de futebol: desde esta semana. Não percebo, havendo coisas com a emoção do colecionar borboletas, como é possível gritar no sofá e esperar pelo intervalo para ir buscar uma cerveja só porque 22 tipos de cuecas andam atrás de uma bola. Ainda esta semana, lia eu o último livro de Herberto Helder quando, por causa de um salto que dei (há versos empolgantes em A Morte sem Mestre), o cachecol vermelho e verde me tapou a visão.
O episódio desviou-me do livrinho e por acaso pousei os olhos na televisão onde dois irmãos siameses dialogavam. Evidentemente era a primeira vez que eu reparava neles ou, para ser sincero, tinha uma vaga ideia: o de pé eu sabia que se chamava Képler Laveran Lima Ferreira, pesava 81 quilos e quando jogou no Marítimo B marcou um golo com o seu pé melhor, o direito, mas isso é tudo que sei dele. Ah!, e que lhe chamam Pepe ou coisa parecida, que eu não ligo aos futebóis. Estávamos, pois, nos 37 minutos e 47 segundos – mas não garanto porque eu, números, é só para contar os decassílabos – e ele tinha a cabeça unida ao seu gémeo, Thomas Müller, também destro e que na época 2010-11 teve no clube Bayern de Munique (cuja alcunha é Der Bayerischen Riese, a única expressão em alemão que em conversa corrida gosto de dizer), teve, dizia eu, uma média de 0,3958 golos por jogo, aumento notável em relação à época anterior, com média de 0,3653. Voltando ao gémeo Müller, estava sentado.
Na sala, os meus amigos diziam palavras como «árbitro» e outras que não ousariam dizer frente às filhas de 10 anos, também presentes e aos gritos, mas eu continuei absorto. Os siameses eram do tipo Cephalopagus, corpos desenvolvidos cada um para seu lado mas cabeças unidas. Interroguei-me sobre o nome científico quando, apesar de duas cabeças, há só um cérebro, como era manifestamente o caso, sendo o descerebrado o tal Képler. A contragosto, pus de lado o livro do Herberto Helder e folheei a Encyclopædia Britannica, cujos 32 volumes (edição de 1985) tenho sempre ao lado do sofá quando estou de vuvuzela e cachecol vermelho e verde.
Lamento não ter chegado ao fim da pesquisa pois dei por mim com grito engasgado: «Vermelho direto?!», dizia eu quase sem me ouvir porque os outros na sala também gritavam, incluindo as garotas, com exceção da maior, que soluçava porque as câmaras não filmavam tanto quanto ela esperava um tal CR7, rapper, julgo eu. Esta tinha 15 anos, tinha ido no domingo ao espetáculo da Miley Cyrus, o pai dela é um liberal à moda moderna, o que eu desaprovo. Os meus gostos refinados eram outros, por exemplo, a geopolítica, o que explica o grito que eu repetia: «Croata! Croata!», espantando os meus amigos que não sabem como fazer mesmo mal a um sérvio vestido de preto.
Conto-vos isto para dizer como passo as minhas tardes a queimar as pestanas e alimentar o espírito. De passagem, espero também ter dado uma ideia de como o futebol, prática espúria, me deixa indiferente. O facto de ter televisão aberta na minha sala de estar que não vos leve a tresler os meus interesses. Não repudio as novas tecnologias desde que elas me deem acesso à cultura. Por exemplo, na mesma tarde em que me dediquei à poesia, à xifopagia e ao conflito nos Balcãs, tive ocasião de assistir a uma conferência sobre a imagem corporal de adultos no contexto sociocultural contemporâneo. Todos os canais transmitiam a conferência, e em direto, o que me deixa otimista. Apesar de tudo isto vai lá. Apresentou-se um caso de estudo em que o objeto de avaliação psicológica era um indivíduo chamado Paulo Bento. A câmara aproximou-se e viu-se na cara do indivíduo que ele tinha aprendido uma lição. Depois, a câmara aproximou-se ainda mais e viu-se que a cara também dizia que ele não sabia que lição é que era.
Publicado originalmente na edição de 22 de junho de 2014