O comido vivo

Notícias Magazine

Lutadores radicais, adoro-os. Tipo Marco Pannella, anti­go líder do italiano Partido Radical, que sempre fez – e ainda há poucos anos, já octogenário – greves de fome até às últimas conse­quência. A mais violenta foi em 2002, quando ele foi a ponto de fi­car com fome. Geralmente ele claudicava antes, ia só até ficar com apetite. Mas daquele vez caprichou, violentou-se, extremou e che­gou a uma certa larica, apeteceu-lhe algo e, ao fim de duas ou três horas de abstinência, comeu. Explicou-se com classe: «Respeito acima de tudo a vida humana.» Nunca votei nele e não foi por fal­ta de admiração, mas por não me ser reconhecido em Itália esse direito constitucional.

Lembrei-me dele esta semana, depois doutro grande malu­co, também apologista das lutas extremas, prometer fazer-se co­mer por uma anaconda. Cobras que engolem quadrúpedes inteiros na minha terra chamam-se jiboias. Não posso dizer nada do sabor (aquilo é engolido com cascos e tudo), mas conheço-lhe as consequências: depois da refeição, a cobra, de papo cheio, fica absorta, in­diferente, toda a virada para dentro a fazer a digestão. Na minha ter­ra, mudando o que há para mudar, a sonolenta digestão de, por exemplo, uma boa funjada deu azo a esse magnífico verbo que de­fine o que se faz numa boa tarde de domingo: jiboiar.

Na Amazónia, onde se passou a tal experiência do grande ma­luco, essas cobras gigantes chamam-se anacondas. Conheço pouco. Do que sei, comem mais bípedes, vi num filme, com título homóni­mo: no Anaconda, três membros de uma expedição amazónica foram engolidos por uma. Confesso, passei o filme a olhar para a Jennifer Lopez e, quando ela não estava, a ansiar pela seu regresso. Mas, aten­ção, quando ela não aparecia eu continuava tranquilo, com a certeza de que não fora engolida pela anaconda. Ela, a Lopez, não cabia.

Ora bem, o citado grande maluco prometia «ser comido vivo», para ser visto no Discovery Channel. Aquele «Eaten Alive», comi­do vivo, como era publicitado o documentário, pareceu-me logo mais uma daquelas suaves greves de fome até às últimas conse­quências que eu tanto aprecio. Tipo Marco Pannella, tipo agarrem-me se não mato-o, tipo perder as estribeiras mas continuar pru­dentemente montado no cavalo. Não me desiludi.

O grande maluco era um cientista americano, Paul Rosolie, amante da Amazónia e disposto a morrer (enfim, até certo ponto, como tudo nesta crónica) pela sua causa. Daí o documentário, de duas horas, passar a primeira hora e meia à procura de uma anacon­da pela floresta amazónica. Rosolie e a sua equipa começaram por apanhar uma, enorme, mais de 7,5 metros e de 135 quilos. Abando­naram-na por, disse a expedição, ser demasiado grande, o que im­possibilitou apanhá-la…. Parece a anedota do soldado do Raul Sol­nado, que disse ter feito «um prisioneiro.» Onde está?, perguntou–lhe o sargento. O soldado: «Não quis vir.» Pouco credível que um cientista se permita ser gozado, não é? Também me parece, julgo que o que fez o cientista recuar é que essa primeira anaconda era um macho, o que, numa operação em que o próprio prometia ser «comido vivo», arriscava-se a ser mal interpretado.

Então, mais à frente, encontraram uma anaconda fêmea e mais maneirinha, seis metros, o que, estranhamente, levou o nosso Paul a mergulhar na experiência. Se a intenção era entrar e sair, ser mais estreito não parecia vantagem. Mas ele vestiu uma camisola provocante, embebida em sangue de porco e feita de um material que, em princípio, resistia ao aperto com que as anacon­das esmagam o seu almoço. O homem deixou-se enrolar pela ser­pente – nada de novo desde o começo da Bíblia – e sofreu um aper­tão que o pôs a duvidar de a camisola ser à prova de anaconda. Já a sua cabeça estava na boca da anaconda quando Paul Rosalie gritou como Marco Pannella: «Parou!» Na ementa do Discovery Channel prometia-se um comido vivo, mas serviu-se só o cheiri­nho de um petisco. Gostei.

[Publicado originalmente na edição de 14 de dezembro de 2014]