Parece uma verdade incontestável afirmar-se que todos, independentemente das suas crenças, sexo, idade, nacionalidade ou profissão, têm direito à privacidade e que apenas os próprios poderão abrir mão dela por sua livre vontade e da forma como desejam.
Por outro lado, parece também haver o entendimento generalizado de que existe uma excepção a esta regra. Qualquer pessoa que se afigure, por força do trabalho que escolhe realizar, como figura pública, deixa de ter direito a usufruir da sua privacidade. Pelo menos, é isso que constato ao passar os olhos pela internet.
Sempre que vem a público alguma revelação mais ou menos controversa acerca de uma figura pública, feita à sua revelia, muitas são as vozes que se levantam a dizer que tal é aceitável pelo facto de essa pessoa ser, precisamente, uma figura pública. Talvez por isso importa perceber o conceito de figura pública.
Aqui há uns anos, ser-se «conhecido», ou «famoso», era consequência directa de se ter uma profissão como actor, músico, humorista, apresentador, enfim, qualquer actividade profissional cujo exercício se fizesse frente ao público. Hoje, na era da televisão dos reality shows, esse conceito alterou-se. Não é preciso ter-se uma profissão para se aparecer nos media, basta estar disposto a ceder a sua vida privada para o usufruto dos que acompanham esses programas.
Talvez por isso se tenha começado a tomar a parte pelo todo e considerar que toda e qualquer figura pública, independentemente da sua actividade profissional, terá de aceitar, como parte intrínseca ao seu trabalho, o escrutínio da vida privada.
Percebo a confusão, mas não posso concordar. É possível exercer uma profissão ligada às artes do palco sem que se tenha de expor a vida privada. Na verdade, o único requisito de uma profissão como actor ou músico é mostrar a sua arte frente ao público, ou falar acerca dela nos meios devidos. Qualquer coisa que vá para além do exercício do seu trabalho só deverá ser exposta por vontade expressa e quando surgem notícias à revelia que relatam histórias privadas acerca de si, essas devem ser vistas como invasão de privacidade.
Assim foi com o caso tão falado das fotos de algumas actrizes, modelos e cantoras que apareceram na net, depois de terem sido roubadas de plataformas de armazenamento privadas. Ao invés de apontar o dedo a quem roubou e expôs a privacidade de alguém contra a sua vontade, escolheu-se culpar quem tirou as fotos e as armazenou naquilo que pensava ser um local seguro.
Não tecendo considerações acerca da pouca ou muita segurança destas «nuvens de armazenamento», a verdade é que alguém violou o espaço privado de outra pessoa, tornando-o público. Para qualquer profissão que não as já referidas, tal seria alvo de condenação pública. No entanto, aquilo que se observou foi precisamente o contrário: afirmou-se que havia interesse na sua divulgação, uma vez que as vítimas se constituem como «figuras públicas».
O ser-se figura pública não pode, nem deve ser justificação para o atropelo dos direitos fundamentais que se aplicam a todos os outros indivíduos. Muito menos o ser-se mulher, porque, ao que parece, as únicas celebridades visadas são do sexo feminino, o que nos levaria ainda a tecer considerações acerca da forma diferenciada como são vistas e tratadas as figuras públicas, conforme sejam homens ou mulheres.
Num mundo cheio de plataformas sociais que nos pedem que contemos o que estamos a fazer e a pensar, cada vez é mais importante percebermos e preservarmos o carácter sagrado da nossa privacidade e da privacidade dos outros. Porque privacidade e liberdade andam sempre de mãos dadas e viver numa sociedade onde não há privacidade equivalerá a viver numa sociedade que não é livre.
Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia
Publicado originalmente na edição de 14 de setembro de 2014