Morrendo aos poucos

Notícias Magazine

Não tendo sido novidade para mim, não deixou de ser uma notícia triste. Nela contava-se que havia empresas que pressionavam as mulheres para se comprometerem a não ter filhos por determinado período de tempo se quisessem ficar com o lugar a que se propunham.

Com os níveis de natalidade a baixar de tal forma que o país se tornará insustentável dentro de poucas décadas, os responsáveis políticos tentam perceber aquilo que é claro para muitos há muito tempo. Tudo se agravou com a crise dos últimos 3 anos, mas os sinais preocupantes já se mostravam há bem mais tempo. Tem-se menos filhos porque o país não está organizado ou orientado para facilitar a vida das famílias com filhos.

Quando andei à procura do meu primeiro emprego, em 2001, fui confrontada com a pergunta: pretende ter filhos nos próximos 5 anos? Como precisava do emprego e como, aos 22 anos, não me parecia que existisse a hipótese de vir a ter filhos num futuro próximo, lá disse que não. Senti-me mal por ter cedido a uma pressão tipicamente sexista e, consequentemente, cretina. Mas precisava daquele trabalho, daquele dinheiro ao fim do mês. Por isso, percebo a posição das mulheres que assinam papéis a dizer que não engravidarão durante 5 anos. Apesar de não ter assinado um documento, eu assenti que me entrassem pela minha vida íntima adentro e a devassassem. E ainda hoje não me esqueço daquele momento.

Não tive azar. Não fui caso único. À minha volta, pelo me-nos mais duas mulheres tiveram problemas por serem mulheres em período fértil a querer trabalhar. Uma delas foi despedida depois de ter tido a sua filha. Até engravidar era considerada uma das melhores trabalhadoras da empresa. Assim que engravidou, passou a ser tratada como um peso morto. Até que, passada a licença de maternidade, recebeu a notícia: a empresa iria fazer uma «reestruturação» e ela e outra colega, que por sinal também tinha sido mãe há pouco tempo, iriam ser dispensadas. À minha outra amiga foi-lhe deixado bem claro que se engravidasse não lhe iriam renovar o contrato. Já tinha visto isso acontecer com colegas de tra-balho e sabia que a sua sorte seria a mesma caso tomasse a decisão de ter filhos.

Falo de empresas e vínculos laborais distintos, que vão da pequena à grande empresa, dos recibos verdes até ao lugar de quadro e falo de mulheres com perfis muito diferentes. E não se enganem quando falo de sexismos: não me refiro exclusivamente às chefias masculinas. Em dois dos casos, a chefia era feminina.

Este é um mal que perpassa todo o mundo laboral. Que se estende da economia até à política, que escolhe «matar» as poucas políticas de natalidade que tínhamos, sem procurar encontrar outras soluções para este problema, tentando varrer as culpas para a porta do lado. E que apanha os mais incautos que acham que os casais não têm filhos por egoísmo ou por displicência.

A verdade é que, para muitos casais, não há, neste momen-to, liberdade de escolha. E não é só porque existe a possibilidade de desemprego da mulher. Também é porque as creches são obscenamente caras para qualquer casal da classe média portuguesa, porque os livros escolares mudam todos os anos, à mercê dos interesses editoriais, protegidos pelo poder político, porque as casas, especialmente na cidade onde vivo, Lisboa, estão demasiado inflacionadas para aquilo que valem verdadeiramente, empurrando as famílias para fora dos seus limites, porque as escolas públicas estão abandonadas à sua sorte, sem recursos. Porque, porque, porque.

Um somatório triste e infindável de «porques», num país que se vai deixando morrer aos poucos.

Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia

Publicado originalmente na edição de 6 de julho de 2014