Olhai os lírios do campo..., diz o Sermão da Montanha que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como eles. Explodem de cores, são amarelos, azuis, brancos tigrados ou não… E são frágeis. Aquela vivenda chamava-se Liliesleaf Farm, quinta da Folha de Lírio. Ficava em Rivonia, subúrbio de Joanesburgo. Naquele tempo (princípio dos anos 60), um lugar pacato, ainda os supermercados não tinham conquistado o Convento das Carmelitas Descalças. Liliesleaf Farm vai ficar marco histórico e Rivonia vai ficar labéu: «O Processo de Rivonia»… No verão de 1961 para 1962, inverno europeu, vivia num anexo da quinta um preto alto, vestido de jardineiras azuis. Chamava-se David Motsamayi e, por vezes, vendia legumes nas ruas de Rivonia. Na verdade, chamava-se Nelson Mandela, era político na clandestinidade de um partido proibido na África do Sul, o ANC. Ele vai ser preso, condenado à prisão perpétua e tornar-se uma lenda. «Um homem único», disseram esta semana dezenas de líderes mundiais.
Mas não é ele que interessa nesta história. A quinta era de um artista, Arthur Goldreich, judeu sul-africano. Fora comprada para dar apoio ao ANC, que combatia o apartheid, um regime que negava direitos básicos às populações não brancas. Rivonia, onde ainda hoje a maioria da população é branca (54 por cento, para 29 por cento de negros) era um bom disfarce para as reuniões clandestinas. Goldreich ficava na casa principal, com a família, e «David», o empregado negro, na cubata de adobe e teto de colmo. Um filho do empregado ia por vezes visitá-lo e, ao brincar com um dos filhos do dono da casa, mostrou-lhe uma revista. «É o meu pai e o verdadeiro nome dele é esse escrito aí: Mandela», disse, apontando para uma foto de um foragido. O branquito falou aos pais da novidade mas foi aconselhado vivamente a calar-se.
Havia um outro garoto nas brincadeiras na quinta. George Mellis, de 10 anos, filho do dono do vizinho parque de caravanas, visitava os filhos de Goldreich. Talvez não lhe tivessem mostrado a revista com a tal fotografia. Mas passaram-se sob os seus olhos cenas insólitas para aquele país, naquele tempo: ele viu chegar negros, brancos e indianos que se cumprimentavam com um aperto de mão. Disse ao pai, este falou ao chefe da polícia local que aconselhou o garoto a apontar as matrículas dos carros. Eis George armado em xerife quando não estava a ser senão um queixinhas. Em 11 de julho de 1963, carrinhas dizendo que eram de uma lavandaria irromperam na quinta: 19 presos, o ANC foi quase decapitado. Até Mandela, que depois da inconfidência do filho procurara poiso mais seguro, acabou preso.
Entre os presos de Rivonia, as cores do arco-íris – que uma eternidade depois o bispo Tutu cantaria e dançaria: «O meu país é um arco-íris! O meu país é um arco-íris!» – havia seis brancos (todos judeus), dois indianos, negros, um mulato… Arthur Goldreich e outro branco, Harold Wolpe, vão fugir vestidos de padres e o exílio só acabará quando, em 1990, a prisão se abrir para o preto de jardineiras que passará a usar camisas estampadas e coloridas, de tecido artesanal (batik). E um sorriso.
Mas não é desse, repito, que quero falar. Voltando ao julgamento. Foi depor como testemunha de defesa um homem amargurado. Já na altura, Alan Paton era uma celebridade, o seu livro Chora, Terra Bem-Amada era um best-seller mundial. Escrito em 1948, ano em que o apartheid foi imposto, Cry, the Beloved Country acaba com dois pais sul-africanos, um negro e um branco, com os dois filhos mortos, o que é a pior das orfandades. As sentenças do julgamento de Rivonia também foram corridas a penas perpétuas… Que quadro mais sombrio, como os do «dono» da quinta da Folha de Lírio, Arthur Goldreich, que só pintava abstratos a preto e branco. Alan Paton morreria em 1988, sem saber que havia alternativa.
De George Mellis, aquele miúdo que apontava matrículas, não sei mais nada. Tem idade para ter um neto de 10 anos. Como eu gostaria de contá-lo, ao novo miúdo de 10 anos, passando o olhar distraído pelo aperto de mão entre um negro e um branco.
[15-12-2013]