«ACONTECEU OUTRA VEZ. Saíste de casa às dez da manhã para ir “num instantinho” ao centro comercial comprar um presente qualquer para a tua chefe, porque te tinhas esquecido. Agora são quatro da tarde e acabo de receber uma mensagem tua a dizer que vais “só ali” ver mais uma coisa para a tua irmã. Voltei a almoçar sozinho com o filho porque tu estás no teu mundo natalício. Maldita quadra.
«ESCREVO ISTO AGORA porque estou danado contigo e preciso de descarregar para algum lado. E assim serve–me “para memória futura”. Para não me esquecer. Para o ano, quando for apanhado outra vez nesta lufa-lufa e estiver a vacilar, indeciso entre a falta de pachorra e o desejo de te fazer a vontade e de te acompanhar nestas andanças, vou ler este e-mail. Eu sei que isto te choca, e que é difícil perceberes, mas eu detesto mesmo o Natal! E, em 15 anos de casamento, sempre consegui, a custo, pôr isso de lado por tua causa. Resultado: um mês ansioso, enervado, sem paciência, num sacrifício de todo o tamanho. Tudo para te fazer feliz. E para não me chateares.
«DETESTO A AZÁFAMA, a correria, a sofreguidão para comprar os presentes. Detesto o dinheirão que gastamos em lembranças que muita gente não vai querer para nada. Detesto as listas que fazes, para não te esqueceres de ninguém, as comparações com as listas dos anos anteriores – que tu guardas! –, as contas que andas sempre a fazer para saber se não estoiramos o orçamento do mês. Detesto que me obrigues a andar a toque de caixa atrás de ti, de loja em loja, a comprar os presentes que já pensaste e decidiste. Detesto ter de voltar às mesmas lojas para trocar a roupa grande ou feia que me vão oferecer. Detesto os doces todos que enfardamos nesta altura e as horas que passamos na cozinha por causa das filhós. Eu nem sequer gosto de bacalhau. E os fritos dão-me azia.
«SOBRETUDO, detesto a obrigatoriedade de ter de estar feliz só porque é Natal. Não gosto da felicidade com hora marcada. Ou estamos bem-dispostos ou não estamos. Ter de estar animado só porque o calendário diz é uma estupidez. Chama-me antipático, antissocial, bicho do mato, o que tu quiseres. Não me rala muito. Em 15 anos, nunca ligaste a esta minha aversão ao Natal, mas nem por isso me consegui livrar da tua febre pela quadra. Sim, porque tu nasceste para isto. Tu deliras. Ele é a roupa nova para estrear na noite de 24 – já te disse o quanto acho isso idiota? –, a decoração da casa, as visitas às aldeias-presépio, os filmes na televisão, do Sozinho em Casa aos clássicos da Bíblia, os cânticos a tocar a toda a hora na aparelhagem. Garanto-te que, se ouço o Noite Feliz ou o Jingle Bells mais uma vez, atiro o CD pela janela. E os postais para a família com a cara do filho, feitos pelo fotógrafo que ia à escola? O miúdo odiava, mas tu obrigava-lo a isso todos os anos. Sabes que ele chama ao Pai Natal gordo velho ressabiado, não sabes? E que a relação dele com o Natal é muito mais parecida com a minha do que com a tua. Sim, o nosso filho herdou o meu espírito natalício, não o teu. Irónico, não é?
«A ÚNICA COISA DE QUE GOSTO é da ideia de termos um pretexto para estar com a família. A isso acho piada. Até porque, se assim não fosse, possivelmente não veríamos muita gente até ao próximo casamento, batizado ou funeral. Mas ter de levar sempre com os amuos da tua mãe porque não vamos todos para a mesa ao mesmo tempo já é cansativo. Um destes dias digo-lhe isso. A pior coisa que ela pode fazer é ficar chateada. Mas para isso já tenho a filha dela amuada porque eu não vou apanhar musgo para o presépio.»
[Publicado originalmente na edição de 21 de dezembro de 2014]