Ela, o pai e a amante dela

Notícias Magazine

A história pode parecer estratégia para chamar holofotes, como aqueles programadíssimos escândalos de repetição à ma­neira de Miley Cyrus. Ora agora encosto as nádegas a alguém e meneio-as lascivamente durante uma gala, ora prà semana lanço um vídeo e mostro-me a balançar, nua, montada numa bola de ferro para demolição – todas as raparigas de 20 anos são belas e é natural o desespero em agarrar o tempo para que ele não fuja. Mas não, justamente. Esta não é uma história de desespero adoles-cente, é uma história que sabe que vai trazer alvoroço universal mas trata de coisas tão fundas como um pai, uma filha e o mundo que às vezes anda demasiado depressa. O velho William (o da Lady Macbeth), se fosse mais moderno, não a desdenharia, a esta história.

Então, um pai, Cecil Chao, 77 anos, milionário chinês de Hong King, e uma filha, Gigi, 34 anos, lésbica e casada (em França) com outra mulher, também chinesa, com quem vive há nove anos. Cecil preferia que a filha fosse casada com um homem: «Eu só quero que ela faça um bom casamento, com filhos e se tor­ne a herdeira dos meus negócios.» E acrescentou que não queria meter-se na vida privada da filha. Homem prático, Cecil, em setembro de 2012, deu um preço ao negócio: homem que conven­cesse a filha ganharia cem milhões de dólares de Hong Kong (cinquenta milhões de euros). Houve muitos candidatos – uma chinesa, que percebeu o espírito aberto e dialogante da coisa, até ofereceu o seu marido – mas Gigi não se deixou convencer, apesar de ter sido fotografada a ler, com um belo sorriso, as ofertas dos pretendentes. Acontece que ninguém a convenceu – Gigi conti­nua a amar a sua mulher e quer continuar com ela. E, agora, o pai dobrou a oferta, já estamos em cem milhões de euros.

Deixem-me começar por sublinhar o lado civilizadíssi­mo desta história. Já ouvi muitas opiniões sobre a tentativa de opressão daquele pai sobre a filha. Não me parece haver. Eu também quando conheci o meu genro, um jovem admirável, fiquei desagradado por, apesar de gostar de futebol (adepto do Chelsea), ele não conhecer Garrincha como devia ser. Para mudar as coisas não me propus gastar tanto como o tycoon de Hong Kong mas sempre gastei algum, em vídeos sobre o Mundial de 1962, na bio­grafia Estrela Solitária, de Ruy Castro, e uma ou outra frase de Carlos Drummond de Andrade. Hoje sou um sogro feliz. O que aconteceria se ele continuasse a ignorar Garrincha? Não sei, mas estou contente por ter tentado, e conseguido – sem nunca ter violado o livre-arbítrio de ninguém – mudar o curso da História. Até prova em contrário, é o que Cecil Chao tem tentado fazer.

Acontece ainda que o sujeito principal desta história não é ele, é a filha. Linda (eu não quero aumentar o pelotão de candida­tos, mas a verdade é esta: linda!), encantadora, dizem, boa empre­sária e pilota helicópteros. E ama a tal. Perante os embaraços que o pai lhe causa, ela não faz fitas de ofendida, sorri com a vontade do pai em pilotar-lhe a vida – e não deixa. Simplesmente, não dei­xa. Gigi podia fazer um escarcéu sobre a atitude reacionária dele em não perceber que a filha ama outra mulher. Mas não, simples­mente diz, sobre aquilo que é, isto: assim é. E sabem o que, fazen­do ela assim, fez ela do pai? Transformou-o, se não no maior pro­pagandista do amor gay, pelo menos no homem que mais quis pagar para mostrar, afinal, que o amor gay existe.

E, para lá da lição sobre um tipo de amor, Gigi Chao falou do assunto (mais, praticou) na sua universalidade. Ela não rejeitou os candidatos. Duvidou foi que outros a pudessem seduzir. Gigi até admitiu poder ter uma relação («de amizade», disse, mas sabemos lá pôr fronteiras nessas matérias tão imateriais…) com quem admi­tisse que ela já tem uma mulher na sua vida. Não sei se ela alcan­ça o desafio em que se meteu, mas pôs o amor no seu lugar certo: entre desafios. Ver esta história como uma mera aposta de cem milhões de euros é, de facto, curto.

[02-02-2014]