Dúvida

Notícias Magazine

O filme Dúvida foi tirado da peça teatral Dúvida: Uma Parábo­la. História com moral no fim, pois. Vou lembrá-la. Num colégio re­ligioso do Bronx, uma madre (Meryl Streep), seca e desconfiada, não gostou do sermão do padre (Philip Seymour Hoffman, que morreu nesta semana). A madre pôs as irmãzinhas a escrutinar o padre. Uma das irmãzinhas repara que o padre dá atenção especial a um aluno. Alerta a madre, que morde na suspeita com a gana das convictas. Nenhum ator no mundo sabia mais do que Philip Sey­mour Hoffman interpretar a falta de certeza, o talvez. A câmara aproxima-se da cara dele, como a multidão no Louvre se chega a ou­tra obra-prima, Gioconda. A cara do padre explodia isto: a dúvida. Ele dava explicações plausíveis e logo um não sei quê relançava a suspeita. Um dia a madre diz ao padre que falou com a madre de ou­tra escola e soube que ele já tivera um caso esquisito. O padre cede e vai-se embora. Na cena final, a madre confessa à irmãzinha que inventou a história da outra escola, e ainda bem, pois provou que o padre tinha mesmo telhados de vidro e foi embora… Dito isto, ela desata a chorar: «Tenho dúvidas… Tenho tantas dúvidas…»

É, não só a peça teatral, também o filme Dúvida é uma parábola. E a moral é: nem sempre aos homens é possível a certe­za. The New York Times (a 1 de fevereiro, na coluna de Nicholas Kristof) publicou uma carta-aberta de Dylan Farrow, 28 anos, fi­lha adotiva de Mia Farrow e Woody Allen. Em agosto de 1992, Mia Farrow acusou o seu companheiro de ter molestado sexualmente Dylan. A atriz gravou um vídeo, onde a menina, então com 7 anos, relatou o comportamento indecente do pai adotivo. Agora, na car­ta publicada no The New York Times, ela confirma o testemunho antigo e dá pormenores crus, o pai leva-a pela mão para um sótão da casa, deita-a para ela brincar com o comboio do irmão e abusa dela. É esmagador, doloroso, insuportável. Sobre o testemunho, ela própria, já com uma vida onde soube que as suas palavras iam ser postas em causa, diz: vão dizer que é uma palavra contra ou­tra palavra, mas eu sei o que é preto e o que é branco. Ela sabe.

Claro, a essência desta história – verdadeira ou não – é secamente isto: uma menina é violada pelo seu pai. Mas a pró­pria Dylan, logo na abertura da sua carta, nos interpela: «Qual o seu filme preferido de Woody Allen? Mas antes de responder, vo­cê deve saber…» E ela parte para aquela horrível subida ao sótão. Será pouca coisa comparada ao tamanho do assunto, mas a des­sacralização do artista mete-nos numa história que seria só pa­ra ser lida nas páginas de sociedade dos bons jornais ou nas man­chetes sórdidas dos tabloides. Também eu, arrastado pelo teste­munho de Dylan, perguntei-me: da próxima vez que ouvir Rhapsody in Blue, vou sonhar estar num banco de madeira, com o meu amor ao lado, olhando a Queensboro Bridge? Ou vou var­rer Woody Allen da minha vida? Respondi à pergunta de Dylan: desculpe, o meu filme preferido de Woody Allen é Manhattan, vai continuar a sê-lo e não é que não queira, não posso esquecer a emoção que foi vê-lo pela primeira vez. Mas suspeito de que, da próxima vez, algum encanto se quebrou.

No entanto, Woody Allen nunca foi acusado judicialmente de nada – merece a presunção de inocência. Logo a seguir à car­ta-aberta no The New York Times, Robert B. Weide, autor de um documentário sobre o realizador (Woody Allen: A Documentary) publicou um texto, muito cheio de factos, no site americano The Daily Beast, onde escalpeliza as acusações. A tese é que Mia Farrow, naturalmente ofendida por o namorado (Farrow e Allen nunca viveram juntos) ter passado a viver com outra das filhas adotivas dela (mas não de Woody Allen), Soo-Ye, maior, de 19 anos, criou, primeiro, acusações de abusos sobre Dylan, que as autoridades consideraram não credíveis, e, depois, um espírito de clã dos filhos contra o ogre que levou a irmã (Soo-Ye)…

Certezas, só a de Dylan Farrow ser vítima. Dúvi­das, as do costume: Dylan Farrow sabe o que aconteceu mas nós não.