Das nossas nostalgias e das nossas realidades

Notícias Magazine

Quando eu era ainda miúda já não havia desfolhadas para nos empolgarem a sério com o Festival da Canção, as senhas de revoluções tinham esgotado, as próprias revoluções já se tinham transformado no estado das coisas, e a situação já não exigia le­tras como as do Ary dos Santos. Mas o Festival da Canção conti­nuava a ser «o» Festival da Canção. Um acontecimento, no final dos anos 1970, anos 1980 adentro. Os exemplares da revista TV Guia alusivos ao acontecimento esgotavam e eram transaciona­dos a peso de ouro – ou berlindes, ou qualquer moeda de troca de recreio infantil. Amarelecíamos os suplementos com as letras em papel sépia, decorando-as. «Vem amor, a noite é uma criança…», cantávamos, em uníssono e alto anacronismo, com as nossas vo­zes infantis, o rapidamente famoso Bem Bom, das Doce.

Nesse Bem Bom já não havia nenhum tipo de qualidade poé­tica – nem musical, diga-se, embora, aqui, admito a discussão com os especialistas em música popular. Aliás, o que de melhor havia, por esses dias, ainda, para nos aquecer a alma eram as com­posições sábias, populares, mas de grande qualidade, do Carlos Paião. Talvez por isso, essas foram as que ficaram. No nosso ouvi­do e na história da música, quando a história da música não se re­sume apenas numa recordação de enlatados.

Há muito tempo que não se ouvia falar do Festival da Can­ção. Tirando para alguns indefetíveis apoiantes, nostálgicos ou não, o festival deixou de ser o acontecimento que era. Há várias explicações para isto. A televisão há muito que não é o que era, de um monólito de um canal e assuntos de conversa passou a ser uma miríade de temas, de meios e mensagens. A música portuguesa – mesmo a popular – cresceu, multiplicou-se e afastou-se, na sua rebeldia, para outras zonas da intervenção social. E aquilo que já se perspetivava – a baixa de qualidade dos concorrentes – tornou–se de tal forma evidente que acabámos por nem sempre conse­guir concorrer sequer ao idêntico Festival da Eurovisão, esse por­to de abrigo de canais de todo o mundo, que perdeu, também, pe­lo seu lado, força com a globalização.

Nesta semana, porém, o Festival da Canção voltou às bo­cas do mundo. A polémica instalou-se, ao que parece, porque te­remos a representar nos palcos da Eurovisão uma canção pimba, escrita – ó coincidência histórica – pelo fundador do estilo, o can­tor e compositor Emanuel. E, dizem os críticos, quando Susy es­tiver a debulhar Quero Ser Tua, ritmo entre a quizomba e a cha­ranga de feira, com as suas pernas altas, cara bonita, com dois ba­tuqueiros mulatos com corpos nus pintados, nesses palcos, e à vista do mundo civilizado, será a imagem de Portugal que sairá maculada.

Nesta polémica o que me espanta é… a polémica. O Portu­gal televisivo que passa dias – dos úteis e dos fins de semana – a fio a ouvir cantores pimba em feiras intermináveis que se trans­formam em programas televisivos de longas horas de diretos es­tava à espera de quê? Pois parece razoável que o gosto que faz as audiências desses programas seja o mesmo que elegeu Susy – pe­lo voto popular – ou não? O Portugal televisivo que vibra com con­cursos de talentos em que aquilo que se premeia não são propria­mente os talentos, mas antes a capacidade de imitar outros, con­tava com que milagre da imaginação popular para agora sair-se com uma cantiga notável? Digamos que, aqui como noutras áreas, temos o que merecemos. Nem mais nem menos. E resta-nos dese­jar muito boa sorte a Susy, que o seu bambolear a leve tão longe quanto possa ir.