A voz ainda não dói a Anita Guerreiro. A decana das marchas populares e do fado, que participou no recente Festival Alfama e continua a cantar todos os dias no Bairro Alto, faz 78 anos daqui a um mês.
Bebiana Guerreiro Rocha nasceu numa cave defronte ao Hospital do Desterro, freguesia da Pena, em Lisboa, cresceu feliz, «miúda do Intendente», filha mais velha de um marceneiro e de uma alentejana de voz doce. Fascinava-a o fado, as marchas populares, as festas na praça, os teatros de bairro. Aos 7 anos distinguia-a a voz segura e uma alegria que ainda hoje não sabe explicar. Aos 17, estreava-se, profissional, com dois fados de Amália que nunca mais cantaria, porque só gosta de cantar o que é seu. Entrava em palco Anita Guerreiro, nome que a levou de sucesso em sucesso, quase sempre com Lisboa na voz. Sucesso, amor e desamor, perda definitiva e sonho adiado, desalento e engano. E a alegria de infância, reencontrada mais tarde, sob o sol de África e na vida do circo, ao lado da paixão que nem a Alzheimer conseguiria apagar. Anita Guerreiro Cardinali, vivida uma vida, mantém a firmeza e até a alegria na voz. Resiste. Mas a solidão já pesa .
Vamos começar por uma tarde de dezembro de 1952, a tarde em que Bebiana Guerreiro Rocha, de 17 anos, se apresenta como candidata ao passatempo «Tribunal da Canção» e sai de lá já Anita Guerreiro.
_Esse passatempo fazia parte de um programa radiopublicitário muito popular, O Comboio das Seis e Meia, e quem me levou, às escondidas do meu pai, claro, foi uma vizinha minha, que me incentivava muito. O produtor do programa era o José Marques Vidal, que, juntamente com Miguel de Oliveira e o José Castelo, fazia as avaliações. Logo no ensaio, o Marques Vidal interrompeu-me e levou-me aos outros dois, que estavam numa sala ao lado. Depois de me ouvirem cantar, logo decidiram que eu já nem concorria. Estrear-me-ia, isso sim, na quinta-feira seguinte no Café Luso. E também logo me escolheram o nome. Já saí dali Anita Guerreiro.
Que cantigas levou para esse concurso?
_Dois fados da Amália de que gostava muito – o Fado da Saudade e Foi Deus. Repeti-os na estreia.
Os fados da sua sorte?
_Se eram, nunca mais os cantei. Aliás, nunca mais cantei Amália.
Por alguma razão especial?
_Porque sempre preferi cantar as minhas coisas e porque tive a sorte de chegar a esta profissão numa altura em que grandes maestros e poetas compunham para o teatro de revista. Amadeu do Vale, Fernando Carvalho, mestre Tavares Belo e tantos outros, assinavam êxitos atrás de êxitos.
Estreou-se então, numa quinta-feira, ainda de dezembro, no Café Luso. Qual foi a reação do pai, que não sabia de nada?
_Quando cheguei do concurso, feliz que eu estava, fui esconder–me no quarto. Não que tivesse medo do meu pai – ele nunca me tocou – mas tinha-lhe respeitinho. «Ó ti Rocha», disse-lhe a minha vizinha, «olhe que a Biana [chamavam-me assim] foi ao Comboio das Seis e Meia e nem cantou. Querem que ela se estreie já na quinta-feira. Vai como artista.» A primeira reação não foi boa mas quando me ouviu dizer que gostava muito de ir, consentiu. «Mas que seja uma vez sem exemplo.» E olhe que ia sendo.
Então, correu mal?
_A minha parte correu até muito bem,mas logo por azar saiu uma lei que proibiu os programas radiopublicitários, quer dizer, eu a chegar e aquilo a acabar. Fiquei muito triste até saber que os produtores do programa iam promover uma tournée pelo Algarve e queriam levar-me no grupo. O problema era convencer o meu pai a deixar ir uma filha de 17 anos para uma tournée, ele que não confiava nada naquela gente. Fui salva pelo Tony de Matos e a Maria Sidónio, a sua mulher na altura, que se comprometeram a tomar conta de mim durante aqueles dias. E tomaram.
Nessa altura, com apenas 17 anos, já tinha decidido que seria aquela a sua vida?
_Nessa altura sim, era o que eu gostava de fazer, mesmo tendo percebido que seria uma vida cheia de surpresas, nem sempre boas. E percebi isso logo nessa tournée, quando a coisa deu para o torto e faltou o dinheiro para pagar um hotel. Estávamos em Évora e enquanto alguns regressaram a Lisboa para a resolver a situação, eu e outros ficámos retidos, a servir de penhora perante o hotel.
Muitas surpresas, sim. De repente, havia uma miúda nova na cidade. Foi bem recebida?
_Fui muito bem recebida, era muito nova, era gira, não cantava mal, e com tantos programas de rádio de discos pedidos cheguei depressa ao público. Depois, em Lisboa, quer os ceguinhos quer as cauteleiras eram grandes divulgadores da música popular e dos fados e, em 1954, o convite para madrinha das marchas popularizou definitivamente o meu nome.
O pai estava finalmente convencido?
_Para o meu pai começava a ser uma alegria enorme, enfeitiçou-se com aquilo. Desconfiava tanto do teatro e, vejam lá, nunca sentiu necessidade de entrar no meu camarim. Nunca me bateu palmas mas chorava ao ouvir-me cantar. Em miúda, cantava a costureirinha de lingerie, agora era a sério.
Vamos ao tempo da costureirinha de lingerie, mais atrás, até. Quem era a Biana, a criança tão popular no Intendente, o bairro onde cresceu?
_Era a «miúda do Intendente» – chamavam-me assim – nascida numa cave, defronte ao Hospital do Desterro, filha mais velha de um marceneiro minhoto e de uma dona de casa alentejana, pobre mas muito alegre, sempre a cantar e a rir. Posso dizer que era uma criança feliz, eu e as minhas duas irmãs – mais novas dois e cinco anos. Punha entusiasmo em tudo o que fazia, inclusivamente a trabalhar.
Começou a trabalhar com que idade?
_Com 10 anos, mal terminei a escola primária e logo na costura. Primeiro, com uma vizinha e depois, por iniciativa própria, numa casa de cintas e espartilhos. Lembro-me de ver a minha mãe chorar quando anunciei que arranjara emprego. Fui ganhar três escudos. Mas o que isto diz é que cedo percebi que era importante ajudar os meus pais. Ainda mais nova, nas férias da escola, levantava-me às cinco da manhã para ir com uma vizinha para o Mercado da Ribeira. Essa senhora apreciava o meu esforço e quis até adotar-me. Os meus pais não deixaram.
E a voz, quando é que o Intendente repara na voz da miúda?
_Uma vizinha da altura, mulher de um toureiro, nascida na Mouraria, puxava muito por mim, como se eu precisasse. A verdade é que andava sempre a cantar. Lembro-me de uma senhora muito rica dizer que gostava muito de mim por causa dessa minha alegria. Que eu cantava não era, portanto, segredo para o bairro, mas a primeira vez que cantei a sério foi na escola e foi o hino nacional, a solo. A coisa correu tão bem que passei a cantar o hino todos os sábados. Nessa mesma altura, fiquei feliz quando um grupo de protestantes lá do bairro me pediu para fazer o Filho Pródigo e a Rosa do Adro. Adorei.
Ainda antes dos 12 anos começou a fazer teatro amador no Sport Clube do Intendente. Já na altura o seu grande fascínio era pela representação?
_Sim, sempre foi e sempre o disse. E a minha mãe sempre incentivou a representação. Ela cantava as suas modinhas alentejanas com uma voz muito doce. Lamento tanto que ela não tenha assistido ao que veio depois. Ainda hoje penso nisso. Teria sido a mulher mais feliz do mundo.
Em 1948, perdeu a mãe. O pai, uma irmã de 10 anos e outra de 5 ficaram ao cuidado de uma menina de 12. O que melhor recorda desses dias?
_Fui mulher muito cedo. A febre tifoide matou a minha mãe. Os medicamentos eram caros mas, custassem o que custassem, o meu pai roubaria se fosse preciso para os comprar. O problema foi estarem esgotados e a minha mãe não tomou os necessários.
Morreu em pouco tempo, aos 34 anos. Era bonita e tinha a voz doce. Houve um tempo de choque, terrível, depois fui aprendendo a tomar conta da casa.
Fisicamente é parecida com a mãe?
_Eu era gira. Faltam-me fotografias dessa época, e gostava muito de as recuperar. Entreguei-as a dois jornalistas que queriam, diziam eles, escrever a minha vida. Nunca mais os vi, nem a eles nem às fotografias. E as poucas que deixei em casa do meu pai, depois da zanga com a minha madrasta, ficaram perdidas.
Madrasta é uma palavra terrível.
_Eu até pensava que a conhecia bem mas enganei-me. Não tanto por mim, porque era eu quem entrava com o dinheiro para a casa – para o teatro ou ia com ela ou com o meu pai, sempre controlada, e o cheque do meu ordenado nem o via, davam-me oito tostões para ir para a Emissora Nacional e para baixo que viesse a pé. Mas as minhas irmãs foram muito maltratadas. Sobretudo a mais nova. A minha madrasta foi mesmo madrasta.
Depois da zanga familiar vai viver para onde?
_Para casa da minha irmã, para Almada. E há um episódio dessa altura, uma altura difícil, que não posso esquecer. Estava então a fazer uma revista com o António Silva. E um dia ele bate-me à porta do camarim: «Menina, a D. Josefina [senhora com quem era casado] manda dizer que não tem necessidade de ir dormir a Almada. Tem a nossa casa à sua disposição.» Abracei-o a chorar. Isto é autêntico, fiquei-lhes eternamente grata.
Às dificuldades da vida pessoal contrapuseram-se sempre as facilidades da vida profissional. Chegava, via e vencia?
_Sempre consegui as coisas sem grande esforço. E onde ia, ficava. Naquela tournée em que acabámos retidos num hotel, conheci um mocinho, pianista, que sabia do meu gosto pela representação. De tal forma que um dia apresentou-me à tia, uma senhora que dirigia o Teatro Variedades, que por sua vez me levou ao Maria Vitória e apresentou ao Eugénio Salvador. Fiquei logo ali e o elenco era este: António Silva, Irene Isidro, Teresa Gomes, Barroso Lopes, Humberto Madeira. Como disse, onde ia ficava.Quando se nasce para uma coisa não há nada a fazer.
De repente, vê-se no meio dos seus ídolos.
_Mas sempre a ajudar as costureirinhas para as estreias ou sempre que era preciso arranjar a minha roupa.
E as amigas de escola, pediam-lhe autógrafos?
_Claro, mas eu era a mesma de sempre.
Lembra-se da Maureen O’Hara, que conheceu no filme Lisbon, de 1956?
_Muito simpática, falou comigo em espanhol. Nesse filme há uma gaffe enorme. Dizem a certa altura que o fado é a canção que os brasileiros mais apreciam. Vejam lá. Antes de cantar estava muito nervosa, mas eram tempos bons, esses.
Eram tempos também de ditadura. Teve alguma canção censurada?
_Há uma que me vem logo à memória porque no ensaio da censura a letra foi cortada de alto a baixo. Era do José Viana, chamava–se Povo que Cantas o Fado e tinha este estribilho: «Fado é esta raiva amordaçada, esta vileza algemada a que chamamos saudade/o fado é este grito angustiado de um povo escravizado, que ainda crê na liberdade.» A cena era linda.
Desde sempre ligada às marchas, escapou à tristeza do fado.
_Também cantei coisas tristes mas é verdade que o meu nome é associado a melodias mais alegres. Por natureza não sou de tristezas ou fatalismos e isso reflete-se no que canto. E os meus maiores êxitos são alegres.
Casou aos 21 com um homem trinta anos mais velho. Foi paixão?
_Gostava dele mas não foi como com o meu segundo marido. Era um senhor, muito meu amigo e da minha família, mas foi uma coisa arranjada pela minha madrasta. Eu andava sempre ou com ela ou com o meu pai, o que afastava pretendentes e eu também não era muito namoradeira. Tinha uma ambição: ser mãe.
Foi feliz?
_Não fui mãe. Ainda durou uns dez anos mas depois acabou.
Pepe Cardinalli, cantor de orquestra e ilusionista. Também muito mais velho. Como se conheceram?
_Em Angola, quando fui trabalhar para as tropas. Estive em África duas vezes. A primeira, em finais dos anos sessenta, por um período de dois anos, ainda na companhia do meu primeiro marido. De resto, foi aí que nos separámos e eu conheci o Pepe. E mais tarde, volto a Luanda, onde fico durante oito anos. E aí nasceu a minha filha.
Depois de tanto tempo à espera.
_Foi maravilhoso. O Pepe, que já tinha três filhas de um anterior casamento, preferia um rapaz mas ficou feliz. A filha era a cara dele. Dez anos depois, no Canadá, nasceria o Bruno. Durante mais de trinta anos fomos muito felizes. Fui muito feliz. Pela família que tinha e pela vida que levava. Fui muito feliz no circo. Eu sabia o que era aquela vida porque anteriormente já tinha sido atração no Circo Mariano. Eu fechava o espetáculo.
Só cantava?
_Só cantava.
O circo é um mundo fechado ou não? Foi bem recebida?
_No início desconfiaram um pouco mas julgo que os conquistei com a minha franqueza e frontalidade. E não só me adaptei àquela vida itinerante como gostava. Tinha uma rulote muito bonita, com um avançado, uma casa com cortinas e tudo. Foram dos melhores tempos da minha vida. Aquela gente ainda hoje me adora.
Quem é que não adora? Tem inimigos?
_Por acaso não. Dos colegas sempre tive manifestações de carinho. E eu também nunca fiz mal a ninguém.
Tem sido uma madrasta boa?
_Fui e tenho sido. Tenho a certeza disso. As minhas enteadas são minhas filhas e os filhos delas meus netos.
Depois de África, emigra para a América. Primeiro Canadá, onde é mãe pela segunda vez, agora de um rapaz. Depois, os Estados Unidos. Como foram esses anos?
_Anos em que para além de cantar foi preciso fazer outras coisas. Por razões várias um trabalho prometido falhou, e eu e o meu marido tivemos de resolver as coisas. O Pepe foi trabalhar para uma fábrica de molduras, eu cantava e fazia limpezas. E olhe que os senhores iam ver-me cantar. Fiquei com amigos para a vida.
O que a levou a regressar a Portugal?
_Um certo dia o meu marido sentiu-se mal e disse-me que queria regressar porque queria vir morrer à terra dele. Achei que era birra e um bocado irritada disse-lhe que sim, eu viria com ele mas os filhos ficavam. Ambos tinham já a vida organizada, o Bruno, gerindo os bares de alguns hotéis e a Maria José cantando para bailes. Voltámos então os dois e um mês depois foi-lhe diagnosticada Alzheimer. Chegaram anos de martírio. Um dia deixou de me conhecer. Morreu há cerca de onze anos.
Anos de martírio. Foram sete.
_Nunca se está preparado para o que nos espera. O meu marido era um homem cheio de vida e alegria e força. E agora estava assim. Pedi muitas vezes a Deus que o levasse.
Não teme a morte?
_Nunca pensei nisso. Peço a Deus que quando me levar não me faça sofrer. E que quem ficar diga, pelo menos, que sou ou fui boa rapariga. Porque boa rapariga fui sempre. E quero ser cremada. Não sou católica praticante mas tenho a minha fé. Em criança nunca me deixaram andar muito na igreja por causa de uma tia, a quem fui buscar o nome, que teve um problema com um padre. Mas quando me apetece, entro numa. Várias vezes, durante a doença do Pepe, pedi a Deus que o levasse. E quando ele morreu não estive em pranto. Só chorei a morte do meu marido quando, regressada de uns 15 dias que fui passar com os meus filhos aos Estados Unidos, entrei no Faia, o restaurante onde canto há 25 anos, e gente a quem estou eternamente grata, e vi vazia a cadeira onde ele se sentava. Aí chorei tudo o que não chorei no funeral e que teria deixado as pessoas tão contentes.
Desde então vive sozinha?
_Completamente.
Com os filhos nos Estados Unidos o que a retém aqui?
_Eu gosto muito do Faia e gosto muito de cantar. É certo que lá também posso cantar e todos os dias os meus filhos, com quem passo sempre o Natal, me dizem para ir. Talvez mais depressa do que eu penso tenha de fazê-lo. Não pelas razões que há uns tempos andaram por aí a divulgar. Não, eu não estou na miséria. Não estou rica, é claro, tenho dificuldades porque ninguém ganha o que ganhava, mas trabalho no Faia há 25 anos e ao fim de cada semana recebo o meu dinheiro. E se precisar de um prato de sopa também lá o tenho. O problema não é esse. O problema é que começo a acusar a solidão. Vivo num prédio em que a mais nova sou eu. Quando alguém tem qualquer coisa toca com as bengalas e lá vou eu acudir. Mas quem me acode se eu precisar? Estou a começar a sentir a solidão. E é isso que vai levar-me para fora e deve ser para breve. Sinto-me em baixo, meto a chave na porta e já não apetece. Só começo a viver às nove e meia da noite, quando entro no Faia, porque ali é que eu tenho tudo – os meus colegas, os meus patrões, o meu público. É mesmo assim. Isto é verdade. Vou fazer 78 anos e os meus filhos estão sempre em sobressalto. Mas também não quero estragar-lhes a vida. E se eu fico com Alzheimer, como o pai? Penso nisso tudo.
Como é o seu dia?
_Acordo ao meio-dia. Almoço perto de casa, regresso e depois começo a preparar-me para a noite.
Já não cozinha?
_Nem pensar, não tenho paciência. Até cozinhava bem mas agora não vale a pena, estragava mais do que comia porque é à mesa que mais sinto a falta da minha gente. Prefiro ir ao cafezinho, estou com a vizinhança e depois vou para casa. E também não janto. Quando muito como uma sopa depois de cantar.
E os amigos?
_Nunca fui de grandes convívios. Vou visitar algumas amigas à Casa do Artista, tenho lá várias, mas já evito. Comovo-mo muito.
E a família em Lisboa?
_As minhas irmãs estão fora. Também passam mal. A família do meu marido anda nos circos. E também não sou de andar pelas casas dos outros.
O Faia é a sua casa?
_É a minha casa e a minha gente. São 25 anos.
Quem tanto cantou Lisboa só podia morar no Bairro Alto?
_Eu gosto do Bairro Alto mas com esta criançada já lá tenho passado situações desagradáveis. Miúdas e miúdos deitados no chão, em muito mau estado, a alguns deles até já dei Alka-Seltzer, para ver se se recompõem. Também fui jovem mas hoje exagera-se muito. Nunca fumei, fiz sempre uma vida regrada e penso que isso é o que me tem preservado a voz.
Quando olha para trás há algum arrependimento?
_Sinceramente não.
E olhando para a frente, o que lhe apetece ainda fazer?
_Não tenho aspirações a nada. Não gostava de fazer mais telenovelas porque tenho noção de que agora já não estou preparada para isso. Bastava pensar que não seria capaz de fixar um texto para ficar muito stressada. Desde que levei uma anestesia geral e que, por causa de uma infeção, recorri a vários antibióticos, a minha cabeça já não é a mesma. Perdi muita memória. Seria incapaz de decorar várias páginas para a manhã seguinte.
Em 1969, cantou a sua cantiga mais emblemática. Cheira a Lisboa nasce como?
_Os emigrantes chamam-lhe o segundo hino. E ainda agora a canto todos os dias, a pedido dos turistas. A canção tem realmente uma história. O maestro Carlos Dias mostrou a música ao César de Oliveira para que este fizesse a letra. E o César estava sem imaginação, tinha acabado de fazer a Ai Ai Lisboa e não sabia como pegar novamente no tema. E era isto que ele vinha a pensar certo dia, nas Portas de Santo Antão, onde, por causa de uma fábrica de bolos, cheirava sempre muito bem. Cruzaram-se com ele dois soldados que vinham à conversa. Disse um: «Olha que cheira tão bem»; responde o outro: «Ora, cheira a Lisboa». E foi assim que o César escreveu o Cheira a Lisboa. Mas a história não acaba aqui. Há dois ou três anos, estava nos Açores num programa de rádio e contei esta história. Pouco depois ligou um ouvinte. Quem era? Um dos dois rapazes que comentaram o cheiro a bolos. Bem, toda a gente chorou.
À época, teve noção de que estava a cantar um sucesso?
_Logo na estreia cantei-a oito vezes. Estava a ver que nunca mais saía de cena.
BASTIDORES
«AS PESSOAS NUNCA ME CANSAM»
Por Alexandra Taveres Teles
Chegou à entrevista antes da hora marcada, em dia de aniversário do filho, que vive nos Estados Unidos. A conversa foi longa, interrompida por três telefonemas – dois convites para entrevistas em canais televisivos e um da irmã, a pedir o contacto do sobrinho. Estava impecavelmente penteada e maquilhada por si própria. Eyeliner perfeito, que já desenha de cor, diz. «Hoje é dia mau para os olhos. Já me fartei de chorar ao telefone com o meu filho. Chorámos os dois.» Os olhos, nos seus 77 anos, parecem-me perfeitos. Os olhos e as mãos esguias, expressivas, ainda lisas. «Mãos de muito trabalho.» Foi num dos últimos dias de verão. Chovia copiosamente mas, mesmo a coberto do guarda-chuva e de generosos óculos escuros, muitos, na rua, reconheceram-lhe o traço e voz. Primeiro, na fila da praça de táxis, depois, por falta de carros, a caminho do Bairro Alto, amparadas uma na outra, a maldizer a calçada portuguesa em dia de chuva. «Olha esta senhora. Não se importa que a cumprimente?» «Pode dar um beijinho ao meu neto?» «Posso dar-lhe um beijinho, gosto tanto da senhora.» «Podes, filha, dá cá. Um beijo pede-se e dá-se.» Mais beijos, mais paragens, o chão como gelo. «Cansada?», perguntei. «Nada. As pessoas nunca me cansam.»