O saber popular continua a ser visto por muita gente como alternativa aos fármacos. Agora, a ciência está a validar a eficácia deste conhecimento antigo.
Quem não tem uma avó versada em curar maleitas a partir do que a terra nos oferece terá, pelo menos, um familiar ou amigo que aprendeu com a dele aquelas receitas capazes de debelar gripes, retrair varizes, tratar diarreias, cólicas menstruais, aftas, herpes, insónias ou queimaduras de pele. O jardim de ervas no quintal ou as prateleiras cheias de boiões com réstias de plantas e animais improváveis talvez sejam mais raros. Mas a ciência vem agora dar razão a quem aprendeu a usar a natureza para aliviar as dores do corpo e da alma. Sobretudo porque melhora a qualidade de vida e ajuda à prevenção, antes que seja necessário recorrer a uma medicina mais agressiva.
«As mezinhas, de um modo geral, funcionam, nomeadamente ao nível do sistema digestivo», diz Alexandra Vasconcelos. A farmacêutica rendeu-se ao poder curativo das plantas e dos alimentos: fitoquímicos dos frutos vermelhos para impedir o aparecimento de células cancerígenas; licopeno do tomate para diminuir os riscos de cancro da mama e da próstata; chá verde com capacidade anticancro e antioxidante; alho para o reumatismo; crucíferas (que é como quem diz brócolos, couves, repolho, nabo, agrião, rabanete) para prevenir cancros de pulmão e estômago; estrela-de-anis com propriedades antisséticas, anti-inflamatórias, digestivas e diuréticas; betaglucanos dos cogumelos (sobretudo os shitake, maitakee portobello) a retardar o envelhecimento, estimular as defesas e atuar no combate e prevenção do cancro.
«Na nossa formação em farmácia estudamos as propriedades farmacológicas de químicos e hoje, felizmente, já somos uns quantos a estudar também as propriedades farmacológicas de alimentos e plantas. O conhecimento empírico acaba por ir ao encontro da ciência.» A especialista em medicina biológica gosta de dizer que passou uma vida a receitar medicamentos químicos e irá passar o resto a tirá-los. «A maior parte das pessoas está polimedicamentada. Temos de dar graças pelo papel fundamental da medicina, mas importa ver que está focada em tratar doenças e não na prevenção.»
Alexandra é fundadora das Clínicas Viver, com uma abordagem multidisciplinar que permite fazer diagnóstico precoce e pretende recuperar saúde e prevenir doenças. «Se uma paciente jovem me chega aqui mal-humorada, gorda, triste, sem dormir, na minha cabeça tem de haver uma causa. Aparentemente são “coisices” que o médico desvaloriza, mas que irão redundar em doença mais tarde.» E é aqui que ela tenta adequar a alimentação e a farmácia natural das avós. «Um paciente meu foi agora ao cardiologista, e ele não só lhe tirou a medicação como lhe pediu para servir de exemplo num congresso. Tem 38 anos, perdeu 25 quilos, mudou a alimentação e o estilo de vida. Já não tem colesterol nem valores altos, não toma nada.»
Também Amélia Pilar Rauter, investigadora do Centro de Química e Bioquímica da Universidade de Lisboa, é adepta de se prevenir antes para não ter de remediar depois. «As nossas avós tinham razão: as mezinhas funcionam mesmo, apesar de eu não gostar nada da palavra por dar a sensação de uma certa falta de comportamento científico», diz a especialista em Química Orgânica de Produtos Alimentares, professora na Faculdade de Ciências de Lisboa. «Muitas delas não estão estudadas, não se lhes conhecem os princípios ativos nem que nível biológico e químico atuam. E é isso que faz um químico: dá a base científica àquilo que os mais velhos usavam e funcionava.»
A equipa de Amélia trabalha com componentes naturais que atuam sobre a neurodegenerescência associada à diabetes e ao Alzheimer. Em 2008, concluiu que vários extratos de uma espécie de sálvia, comum nas serras de Aire e Candeeiros, inibiam eficazmente duas enzimas (acetil e butirilcolinesterase) que controlam o progresso da doença de Alzheimer – o chá feito com esta planta poderia ser usado como tratamento não tóxico e de baixo custo. Ultimamente, inspirada por um padre madeirense que receitava infusões de Genista tenera (piorno da Madeira) aos diabéticos que lhe pediam alívio, estuda a fundo esse chá que diminui a glicose no sangue e intervém nos processos da memória e da neurodegenerescência.
«Apostamos muito na diabetes e nas doenças neurodegenerativas, mas há imensas patologias, de coração e eventualmente até o cancro, para as quais pode haver prevenção e retardamento», diz a professora, dedicada a trabalhar as plantas e os alimentos funcionais que compensam deficiências metabólicas e dietas pobres. «Também vamos investigar se alguns princípios ativos chegam a fármacos, mas isso leva dez anos.» Para o Alzheimer, por exemplo, já tem produtos de origem vegetal capazes de inibir as enzimas causadoras do avanço da doença. Outros se seguirão. «O desenvolvimento de fármacos é importante para as doenças em estado avançado, é isso que nos tem feito viver a pensar na cura, mas a prevenção é igualmente importante. Vivemos um momento especial porque estamos a voltar a ela, sabendo as razões por que funciona e como controlar os aspetos positivos e negativos.»
A natureza é, de facto, o primeiro laboratório químico por excelência, desde que o homem se viu na necessidade de prevenir e combater problemas de saúde. O papiro egípcio de Edwin Smith, datado de 1500 a.C. e exposto na Academia de Medicina de Nova Iorque, com o que se pensa ser um texto originalmente escrito (e mais tarde copiado) pelo sumo sacerdote do Antigo Egito Imhotep, descreve um tratamento para ferimentos e queimaduras graves à base de ligaduras com leite coagulado e mel, além dos benefícios de plantas, animais e mezinhas inorgânicas. Na Idade Média, foram muitas as mulheres queimadas nas fogueiras da Inquisição por fazerem uso do conhecimento terapêutico da natureza. Segundo a Organização Mundial de Saúde, 80 por cento da população mundial utiliza plantas medicinais ao natural ou processadas para enfrentar doenças.
«Ao longo da evolução da ciência, vários médicos, farmacêuticos, bioquímicos e biólogos têm tentado encontrar nos produtos naturais – sejam animais, vegetais ou fungos – compostos que podem ser utilizados e/ou sintetizados e que funcionem», diz o biólogo Luís Ceríaco, investigador do Centro de Estudos de História e Filosofia da Ciência da Universidade de Évora. «Muitas vezes, cruzam-se com espécies que já vinham sendo usadas nas farmacopeias tradicionais e validam-nas, como ao hipericão ou erva-de-são-joão (Hypericum perforatum), uma das mais usadas na medicina europeia há centenas de anos e que possui compostos bioquímicos que atuam no sistema nervoso.»
Depois de estudar o folclore relativo aos répteis e anfíbios (fez tese de mestrado em Biologia da Conservação e trabalha com taxonomia e biogeografia de répteis africanos), Luís quis explorar o mundo das mezinhas referentes a animais e foi convidado pelo biólogo brasileiro Rómulo Alves a escrever o capítulo «Análise da Fauna Usada em Remédios Zooterápicos em Portugal: Origens Históricas, Usos Correntes e Implicações na Conservação», para o livro Animais na Medicina Folk Tradicional. «O cruzamento da ciência com os saberes tradicionais é quase sempre positivo, porque ou dá à sociedade a garantia de que dado composto funciona, ou desmascara casos sem fundamento, grotescos e nocivos.»
O biólogo constatou que quase todas as farmacopeias portuguesas publicadas e oficiais, do século xvii e primeira metade do XVIII, apresentam receitas e tratamentos que são praticamente iguais ao que hoje chamamos mezinhas. «Muitas vinham desde o tempo de Hipócrates, faziam parte das Farmacopeias Reais e eram o estado da ciência de então.» Após a reforma pombalina da Universidade de Coimbra (em 1772), a expulsão dos jesuítas e o ensino da ciência e filosofia modernas, a primeira farmacopeia então publicada era quase inteiramente baseada em compostos químicos, com extrações pontuais de uma ou outra planta em laboratório.
«As mezinhas de hoje são um eco da ciência antiga, que foi sendo perpetuada pelas gentes locais como complemento e, por vezes, única alternativa aos cuidados médicos modernos», diz Luís Ceríaco. A revolução científica aconteceu dentro das universidades e centros médicos, durante muito tempo inacessíveis à maioria da população, que manteve os usos tradicionais: chá de trevo bravo para as diarreias, urtigas esmagadas com vinagre para as hemorragias, chás de pilrito, avenca e flor de carqueja com mel para as tosses obstinadas. «Para percebermos a importância deste encontro de conhecimentos, é bom lembrar que as grandes farmacêuticas são das principais financiadoras de investigações etnobotânicas por todo o mundo, sempre na expetativa de conhecer, e por vezes apropriar-se de forma pouco ética, dos saberes e compostos usados por culturas locais há séculos.»
CUIDADOS A TER EM CONTA
» Conheça bem o produto que vai utilizar, certificando-se de que as suas propriedades estão devidamente identificadas e não existe margem para confusão com outro parecido e potencialmente perigoso (a natureza também cria venenos).
» No caso das plantas, saiba que partes podem ser usadas na medicina natural e recolha apenas a porção necessária, de preferência sem desenraizá-las. Nunca colha plantas raras ou em vias de extinção. Em caso de dúvida, compre aquilo de que precisa num supermercado ou ervanária.
» Se está a ser tratado pela medicina convencional e a pensar recorrer à farmácia caseira, fale primeiro com o seu médico. A mistura de princípios ativos pode ser prejudicial.
» Pessoas diabéticas ou com excesso de peso devem optar por chás de plantas adequados ao problema, em vez de recorrerem aos xaropes. A maioria tem na sua composição açúcar e/ou mel, o que os torna desaconselháveis em alguns casos.
» Após preparar os xaropes, deixe-os arrefecer à temperatura ambiente (cobertos com um pano) e verta para frascos de vidro com tampa, que deverá guardar no frigorífico ou num local livre de sol e humidade. Bem acondicionado, um xarope caseiro pode durar até seis meses.
PEQUENOS MALES GRANDES REMÉDIOS
XAROPE DE CEBOLA
O bolbo da cebola é rico em vitaminas, alina, alicina, flavonoides e polissulfetos. Atua como anti-inflama-tório, estimulante da secreção e diurético. Pique finamente cinco cebolas, misture 150 gramas de açúcar mascavado, junte duas colheres de água e deixe ferver em lume médio até obter um xarope. Coe e deite numa garrafa. Tomar uma colher de chá de duas em duas horas.
CHÁ DE CALÊNDULA
Para tratar feridas, coe uma colher de chá de pétalas, deite numa chávena de água a ferver e deixe dez minutos a macerar. Embeba uma compressa com o chá, deixe arrefecer e aplique na ferida várias vezes ao dia.
CHÁ DE MELILOTO
Alivia hemorragias, luxações, contusões, problemas de sono, agitação nervosa, inflamação das veias, cãim-bras. Para estimular a linfa e fortalecer as veias, beba duas a três chávenas diárias da infusão. Deite uma colher de chá de meliloto seco numa chávena de água a ferver, mantenha por dez minutos e coe.
CHÁ DE HORTELÃ
Relaxa os músculos intestinais, facilita a digestão e interrompe crises de vómito. É bom para a azia. Coloque uma colher de chá de folhas numa chávena de água a ferver, abafe dez minutos e beba ainda morno.