Se dependesse só da Califórnia…

É o mais populoso dos cinquenta estados norte-americanos. E em território só fica atrás do Alasca e do Texas. Se fosse independente, seria a sexta economia mundial. Habitada por gente liberal e por cada vez mais hispânicos e asiáticos, a Califórnia simboliza os Estados Unidos do futuro – e está rendida à democrata Hillary Clinton.

Ouve-se música andina na praceta que dá entrada no El Pueblo de Los Angeles. Ali, uma estátua do padre Junipero Serra, com placas em espanhol e em inglês, relembra que a segunda maior cidade dos Estados Unidos, depois de Nova Iorque, foi fundada no século XVIII por missionários espanhóis vindos do México e que o seu nome completo era El Pueblo de Nuestra Señora la Reina de Los Angeles de Porciúncula. «Esta terra já foi mexicana», diz Anthony López. «Donald Trump é um ignorante. Quer expulsar aqueles que sempre viveram aqui. Nenhum latino vai votar nele.» Mas Anthony, pouco mais de 20 anos, talvez o mais jovem do grupinho que ouve os músicos peruanos tocarem flauta junto a um coreto, não tem raízes no México nem é cidadão americano e por isso não pode votar a 8 de novembro. «Sou de El Salvador. Estou cá há dois anos e trabalho num restaurante em downtown. Se pudesse votava para evitar um racista como Trump na Casa Branca.»

Por viver na Califórnia, López tem muitas razões para regularizar a sua situação e um dia até se naturalizar, mas o voto contra Trump não fará muita falta. O mais populoso dos cinquenta estados vai dar vitória segura a Hillary Clinton – que talvez nem viesse aqui fazer campanha se não fossem os recompensadores jantares de angariação de fundos, com as celebridades de Hollywood a destacarem‑se na hostilidade ao rival republicano.

O discurso protecionista, xenófobo e sexista de Trump cai muito mal num estado liberal cada vez mais pluriétnico, com milhões de asiáticos, negros e hispânicos.

«Hillary Clinton lidera na Califórnia em parte porque este é um estado esmagadoramente democrata», diz Christina Bellantoni, jornalista do Los Angeles Times, o grande diário da costa oeste dos Estados Unidos. «Mas também contém muitos elementos que ligam com os seus pontos fortes como candidata – é o estado mais diversificado da nação, tem um crescente número de votantes hispânicos, de votantes que se consideram liberais e de votantes ricos e altamente educados. Esses fatores trabalham contra Donald Trump, porque ele está em sofrimento entre os votantes hispânicos e os republicanos da Califórnia tendem a ser mais moderados e são menos prováveis de concordar com as suas posições sobre imigração ou a fé muçulmana.»


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Tal como outros jornais, do The New York Times ao The Washington Post, o LA Times tomou posição editorial a favor de Hillary. Mas se os democratas parecem ser a opção natural, no caso dos candidatos ao lugar de senador pela Califórnia em disputa neste ano o jornal teve de pensar apenas na pessoa, porque a corrida é entre duas democratas, Kamala Harris e Loretta Sanchez. Como o sistema de primárias californiano põe todos os candidatos a lutar entre si seja qual for o partido, a fraqueza crescente da direita acabou por culminar num duelo entre duas mulheres à esquerda. E é simbólico. Há um século que não faltava um candidato republicano a senador neste estado. Também simbólico é que as oponentes sejam a filha de um jamaicano e de uma indiana (Harris, apoiada pelo LA Times) e a filha de um casal mexicano. «Temos a situação única de serem duas democratas a concorrerem para o assento no Senado em aberto. Isso deixa os republicanos fora da corrida e muitos podem mesmo ficar em casa», sublinha Bellatoni, que, no entanto, acrescenta que há varias propostas também a voto, desde a legalização da marijuana até ao controlo das armas, e esses temas podem mobilizar o eleitorado mesmo que não para a Casa Branca.

NA FAMOSA PRAIA DE SANTA MONICA, onde se chega hoje de Downtown LA (a baixa da cidade) por metro, são mais os turistas meio vestidos a molhar os pés no Pacifico do que as beldades, mulheres e homens, que as séries televisivas e os filmes costumam mostrar. Mas Mandy Smith não faz distinções e no cais de madeira onde estão os cafés e as lojas de souvenirs procura com um altifalante chamar a atenção para as propostas dos Verdes. «Porque pensar só em Hillary ou em Trump? Jill Stein dava uma excelente presidente, tenho a certeza», diz, referindo‑se à médica candidata ecologista, que nas sondagens a nível nacional surge creditada com três por cento das intenções de voto. Mãe de dois adolescentes, perto dos 40 mas com um sorriso que lhe tira dez anos, a ativista confessa que foi apoiante de Bernie Sanders nas primárias democratas mas que Hillary não a convence. «Estão sempre a falar da experiência dela. De ter sido primeira‑dama, senadora e secretária de Estado, mas a mim interessam‑me as ideias para fazer da América um país melhor. E a doutora Stein é quem tem melhores propostas.» E se o voto na ecologista entregar a Casa Branca a Trump? «Nem quero pensar nele como presidente. Mas também não gosto de estarem sempre a falar nisto de os votos verdes serem desperdiçados. De qualquer forma aqui em Santa Mónica ninguém vai votar nele», diz sem parar de entregar folhetos a quem vai passando.

O sistema eleitoral americano faz das presidenciais uma espécie de cinquenta eleições separadas (51, contando com Washington DC). Em cada estado está em disputa um número de grandes eleitores proporcional à população.

O candidato que ganha leva‑os todos (55 no caso da Califórnia, mas apenas três no Alasca). Quem consegue um mínimo de 270 grandes eleitores conquista a Casa Branca. No extremo, pode haver alguém eleito que perdeu no voto popular, como aconteceu no século XIX e se repetiu em 2000, com o republicano George W. Bush a vencer as presidenciais apesar de ter tido meio milhão de votos a menos do que o democrata Al Gore, que tinha sido o vice‑presidente nos dois mandatos de Bill Clinton, marido de Hillary. Mas há outro efeito bizarro do sistema, que é a concentração dos esforços dos candidatos na dúzia de estados que costumam flutuar (Ohio, Iowa, Florida ou Arizona nestas eleições), enquanto gigantes como a Califórnia são semi‑ignorados por serem certos para um lado. «Se votasse só a Califórnia, Hillary Clinton já estava na Casa Branca. Mas a nível nacional não acredito muito nas sondagens que lhe dão favoritismo», comenta Neil (prefere não dizer o apelido) enquanto bebe um sumo de laranja na cafetaria do Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles, famoso pelos seus Gorki, Rotko e Pollock. «Sou republicano e vou votar Trump, mesmo que não me agrade o estilo arrogante dele. Tinha preferido que as primárias fossem para Marco Rubio. Mas não quero uma dinastia Clinton na América, que controle a presidência, o Congresso e o Supremo Tribunal», diz o informático de 34 anos, que trocou o Ohio «pelo sol californiano».


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Não é fácil encontrar apoiantes declarados de Trump por estas bandas. Quando muito há quem dê ao magnata do imobiliário o benefício da dúvida. «Os americanos vão escolher o menos mau. Sei que se Trump fosse eleito seria muito mau na política internacional, mas na economia não tenho certeza de que fosse pior do que Hillary», diz Victor Ramalho, lisboeta que elegeu San Diego para viver e fazer família. Com uma significativa comunidade de origem portuguesa, a cidade mais a sul da Califórnia, junto à fronteira com o México, é o ponto onde desembarcaram os primeiros europeus na Califórnia, em 1542. Era uma expedição espanhola, mas comandada pelo português João Rodrigues Cabrilho, que tem direito a uma estátua em Loma Point, uma península frente à segunda cidade do estado.

Quem não dá mesmo qualquer hipótese a Trump é o eleitorado hispânico (ou latino). De origem mexicana, porto‑riquenha, dominicana ou cubana, representa 17 por cento dos americanos, cerca de 55 milhões de pessoas.

Na Califórnia são 15 milhões, perto de 40 por cento dos 40 milhões de habitantes. Mas como muitos são imigrantes e outros, naturalizados, tendem a esquecer‑se de se recensear, serão apenas 25 por cento dos eleitores, mesmo assim mais do que suficiente para reforçar a vitória de Hillary, num estado muito conhecido pelos estúdios de cinema de Hollywood, mas que desde a agricultura à alta tecnologia de Silicon Valley representa o equivalente à economia francesa. Aliás, se fosse um país independente a Califórnia seria a sexta maior economia mundial. «Nós, californianos, temos muito orgulho na nossa história e ela começa ainda antes de haver Estados Unidos», explica David Hayes‑Bautista, um médico que ganhou protagonismo em 2004 com o livro La Nueva Califórnia, que tem agora nova edição, com um capítulo dedicado a Trump. Explica o também académico, um hispânico orgulhoso da herança latina, que «Trump não é nada de novo na história dos Estados Unidos. A cada vinte anos, mais ou menos, surge uma onda nativista, com gente que pensa que ser americano é ser branco e anglo‑saxónico. A última vez foi em 1994, com a proposta 187, aprovada aqui na Califórnia e que tirava direitos aos imigrantes».

Polémica, essa proposta é ainda muito recordada no estado e ajuda a explicar o favoritismo de Hillary e dos candidatos democratas em geral. «Hoje em dia, os californianos favorecem as políticas socialmente progressistas em relação as conservadoras e, por extensão, são mais democratas do que republicanos. Isto pode ser visto nas políticas desenvolvidas pelo governo e nas escolhas feitas pelas pessoas nas urnas de voto. Este padrão emergiu e reforçou‑se nas ultimas duas décadas», nota Renee van Vechten, da University of Redlands e autora de California Politics, publicado em 2010. Desafiada a explicar melhor o fenómeno da ascensão democrata, a cientista política aponta a tal proposta: «Apesar de os democratas registados ultrapassarem os republicanos desde 1934, os dois maiores partidos costumavam ser muito competitivos na Califórnia em muitas zonas e para diferentes cargos, resultando na eleição de governadores, senadores e congressistas de ambos. Muitos observadores políticos identificam a proposta 187, uma iniciativa em 1994 para recusar o acesso aos serviços públicos aos imigrantes indocumentados, como um ponto de viragem. Com o então governador republicano Pete Wilson a liderar a carga, o Partido Republicano estadual deu sinais de hostilidade geral não só contra os imigrantes indocumentados como contra a imigração em geral, gerando uma contrarresposta.»

Conquistada ao México na guerra de 1846‑1848, a Califórnia nunca perdeu a memória do passado hispânico, mesmo que sempre tivesse sido território meio esquecido tanto pelos espanhóis como depois pelo México.

E nunca foi um estado esclavagista, quase uma homenagem ao seu último governador mexicano, Pio Pico, que tinha sangue negro. Hoje, por força da natalidade e da imigração, admite‑se a hipótese de uma Califórnia de maioria hispânica. E mesmo que Donald Trump prometa construir um muro ao longo dos 3200 quilómetros de fronteira que vão do Pacífico até ao sul do Texas, o caminho para a multiculturalidade dos Estados Unidos é irreversível e a prova está nesta Califórnia, onde perante 15 milhões de hispânicos, cinco milhões de asiáticos e dois milhões de negros, os brancos são já a minoria. Longe vão os tempos em que se tentava travar a imigração chinesa no século XIX ou em que os nipo-americanos eram enviados para campos, durante a Segunda Guerra Mundial, por suspeita de simpatias pelo Japão.

«Um em cada quatro californianos nasceu fora dos Estados Unidos e o tipo de retórica anti‑imigrantes pelo qual Trump é famoso ainda consolida mais a sua aliança com o Partido Democrata. Por isso, a Califórnia é considerada tão solidamente azul, a cor democrata», sublinha a professora Van Vechten. Sim, aqui estamos no Clinton Country.

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SURPRESA NO TEXAS?
Em meio século, só Jimmy Carter conseguiu ser candidato presidencial democrata e ganhar no Texas, o único estado americano que foi independente. O que significa que o segundo maior dos cinquenta estados (atrás do Alasca), e também segundo mais populoso (depois da Califórnia), é um bastião do republicanismo, onde nem Bill Clinton nem Barack Obama tiveram hipóteses. Mas a crescente população hispânica e os anticorpos a Donald Trump em alguns círculos republicanos mostram que o bastião talvez não esteja tão sólido e que Hillary Clinton pode sonhar com a surpresa, segundo o RealClear Politics, um agregador de sondagens. Assim, apesar de tradicionalmente republicano, o Texas passa a constar como terreno de batalha ao lado de alguns swing states («estados bailarinos») habituais (como a Florida, o Ohio ou o Iowa), o que não abona nada a favor de Trump.

*O jornalista viajou a convite da FLAD.