Portugal perdeu o Euro

Notícias Magazine

Sou jornalista de imprensa, tenho preferência pela caligrafia, todos os dias sujo os dedos a folhear jornais. E admito que tenho uma tendência para privilegiar a escrita, porque esse é o meu privilégio dos dias todos. Mas também sei que, na corrida pela cobertura do que se passa num relvado, a televisão leva sempre vantagem. O ecrã oferece-nos em direto os jogos, os triunfos e os fracassos, os deuses e os demónios. A televisão é o primeiro filtro da nossa euforia e da nossa frustração. Estamos mais atentos ao que se passa no ecrã. E o ecrã tem, de tempos a tempos, um mês para reinar sobre o mundo.

Portugal ganhou o Euro com contornos de uma grande obra literária. Houve promessas e batalhas, houve heróis a caírem e outros a levantarem-se, houve borboletas e um tsunami. E eu ouvi a odisseia na rádio, vi os jornais escreverem tanta beleza, mas vi a televisão estatelar-se no chão. A cobertura das televisões portuguesas foi uma desilusão. Só não digo que foi uma vergonha pelos jornalistas que se esforçaram por nos salvar o tédio. Havia, por exemplo, um sopro de beleza nas Crónicas do Euro da RTP, havia reportagens pertinentes no Portugal Allez da SIC. Mas foram as exceções. Quase tudo o resto obedecia a uma fórmula gasta, irrelevante e aborrecida.

Portugal perdeu o Euro, não o viu porque a televisão não o mostrou. A história dos nossos adversários nunca foi contada, nada se sabia dos demais, o que nos era dado a ver era o que já sabíamos. E é claro que o nosso centro de interesse são os nossos rapazes, os nossos adeptos, a nossa história. Nós vimos Portugal no Euro, sim, mas perdemos o Euro na televisão. As televisões só perceberam que havia uma epopeia islandesa, o nosso primeiro adversário, quando os outros países nos disseram. Só olhámos para a incrível história de Gales porque nos cruzámos com eles. Mas da Albânia nada, da Irlanda do Norte silêncio, da queda de Espanha pouco. E foram, todas, histórias magníficas.

Nos dias em que se fala da morte dos jornais e na rouquidão da rádio, eu proclamo o contrário. É que, no papel ou no online, o DN e o JN contaram-nos essas histórias e foram procurar o olhar dos emigrantes menos previsíveis. A Notícias Magazine contou a história dos islandeses antes de toda a gente. O Expresso e a Visão tiveram crónicas de antologia, até um conto diário de pura literatura que saiu dos dedos do escritor Jorge Araújo. O Público lembrou-nos os hinos históricos do futebol. O Correio da Manhã esclareceu-nos de onde vinha o aplauso dos vikings. A Renascença empenhou-se nos gráficos, a Antena 1 e a TSF excelentes no contexto e nos relatos, o Observador com belas histórias à margem. Com as redes sociais, fomos felizmente recebendo tudo de toda a gente, e também do jornalismo estrangeiro.

Nos ecrãs portugueses, no entanto, o centro deste Euro foi um microfone atirado para um lago. Foram comentadores comprometidos com clubes passarem horas a fio a discutir o sexo dos anjos, foi Rui Costa e Deco em estúdio a terem de se calar para escutarem longas explicações técnicas de jornalistas. Foi andar por França a dar voz à mesma figura todos os dias, mesmo que a figura fosse uma pessoa diferente. Foi percorrer o país para ver a portugalidade em cada esquina e só olhar para o centro da praça. A televisão portuguesa – que está repleta de repórteres magníficos, que nada devem a nenhum país do mundo – perdeu o Euro, perdeu a epopeia literária, a comédia e a tragédia de tudo isto. Felizmente a Seleção ganhou-o.

[Publicado originalmente no dia 13 de julho de 2016]