Os casais que se amam em camas separadas

Não é de ânimo leve que se toma a decisão de sair da cama de casal, até porque muitos receiam o que isso possa representar

O “divórcio do sono”, que leva casais a dormirem em quartos distintos para conseguirem descansar, não tem de ser o começo do fim de um relacionamento. É importante tentar solucionar os problemas de base e encontrar outros momentos de partilha e intimidade ao longo do dia. E há casos de sucesso em Portugal.

Se quando as pessoas se juntam esperam partilhar a vida lado a lado, para o melhor e o pior, já as noites podem ser outra história. E há casais que, união e intimidade à parte, preferem passar a noite descansados em camas separadas. Chama-se “divórcio do sono” e levanta desafios aos casais. Se por um lado a qualidade do sono é importante e se reflete no próprio relacionamento, por outro é preciso encontrar novos momentos de intimidade e partilha ao longo do dia para manter os laços fortes. Um equilíbrio necessário, a bem da saúde da relação.

Há 10 anos que José e Maria, nomes fictícios, dormem debaixo do mesmo teto, mas em quartos diferentes. Ele ressona e Maria foi aguentando até que um dia se encheu de coragem e lhe disse que “não aguentava mais não dormir”, conta a mulher, a partir do Algarve. A situação repetia-se “quase todas as noites” e Maria passava os dias cheia de sono. “Não conseguia concentrar-me no trabalho e chegava a adormecer enquanto almoçava”, relata.

Sem conseguir descansar, “passava as noites a dar-me cotoveladas, a acordar-me e a dizer “vira-te de lado” ou “dorme de barriga para baixo”, recorda agora José. Nenhum dos dois descansava, por vezes discutiam e um ia dormir para outra divisão, “chateado”.

O casal ainda passou os primeiros cinco anos da relação a tentar ficar na mesma cama e procurou outras soluções. Ela ia para a cama mais cedo para adormecer primeiro, mas como ele ressonava “mesmo muito alto”, acabava por acordar. Também procuraram um otorrino e José fez alguns “tratamentos e medicação”. “Nada resultou” e decidiram que “era melhor” dormirem separados.

“A decisão foi bastante ponderada e conversámos muito sobre os prós e contras. Já nenhum dos dois aguentava mais. Era isso ou terminar a relação”, acrescenta Maria, admitindo que a “fórmula” tem resultado.

Daqui nasceram novas rotinas. “No início, sentimos muito a falta do afeto, do aconchego”, conta José, explicando que o casal conversou e procurou soluções. “Deitamo-nos sempre na cama de casal, no nosso quarto, onde temos os nossos momentos íntimos. Seja de carinho ou sexuais”. Quando a sonolência se instala, ele vai para o outro quarto.

José e Maria não são caso único. São vários os famosos, por exemplo, que já revelaram que dormem separados. No Brasil, Sheron Menezes, casada com Saulo Bernard, revelou recentemente num podcast que dorme separada do empresário desde o nascimento do filho, há seis anos. David e Victoria Beckham também dormem em camas separadas, pelo menos em algumas noites. Neste caso, pesaram os diferentes estilos de vida e os muitos compromissos na agenda a que cada um precisa de dar resposta. Nas classes altas, a prática tem igualmente adeptos e é sabido, por exemplo, que a falecida rainha Isabel II, do Reino Unido, passava as noites numa cama distinta da do príncipe Filipe.

“Valor simbólico”

Nos Estados Unidos, um estudo de 2017 do Better Sleep Council aponta que, em média, um em cada três americanos afirma que os problemas de sono do seu parceiro têm um impacto negativo na sua própria qualidade de sono. Sinal de que, embora muitos possam viver felizes juntos, dormir lado a lado pode ser um pesadelo.

Em Portugal não há dados, mas Catarina Lucas, psicóloga e terapeuta de casal, diz que esta opção “não é comum nem frequente”, pois existe uma carga “simbólica” no ato de dormir com alguém. “O partilhar quarto, cama, tem um valor simbólico muito grande. Se calhar até dormíamos melhor sozinhos, do ponto de vista prático, ao nosso ritmo, na posição que mais nos convém, etc., mas há todo um simbolismo associado ao que é partilhar o mesmo espaço e a mesma cama que é valorizado”, refere Catarina Lucas. Estamos “formatados para isso”, é o que vemos noutros familiares, nos filmes, nos livros, o que adquirimos como normal.

Não é de ânimo leve que se toma a decisão de sair da cama de casal, até porque muitos receiam o que isso possa representar. Há “outras áreas que se relacionam com isto. A sexualidade, muita da sexualidade dos casais ocorre à noite, quando vão dormir, pela oportunidade de encontro que acontece naturalmente. E para muitos é também o momento de diálogo do dia, é quando param e se encontram, conseguem conversar e partilhar”, explica Catarina Lucas. Abdicar destes momentos não é fácil.

Ressonar e pés inquietos

Em Portugal poderá haver alguns casos em que se toma este tipo de decisões por preferências individuais, mas o motivo mais comum são questões de saúde, com o ressonar no topo da lista.

Anselmo Pinto, otorrinolaringologista que se especializou em medicina do sono, diz que, quando há boa qualidade de relacionamento, o motivo mais invocado entre os seus doentes para irem dormir em camas separadas é o ressonar (ou outro tipo de ruído ao respirar). Mas há outras situações que causam incómodo, como a síndrome de pernas inquietas ou pessoas que, simplesmente, se mexem muito durante a noite, movimentando os lençóis e acordando o companheiro que tem sono superficial.

Muito raramente se coloca a questão logo no princípio, quando um casal começa a compartilhar casa e cama, pois “no início tudo é perfeito e vai dar certo” e há quem anseie por essa nova rotina. “Geralmente começam a tentar dormir juntos e quando se apercebem que não conseguem dormir devido a estes problemas é que procuram mudar”, conta Anselmo Pinto, sublinhando que a decisão não é tomada “contra a outra pessoa”. “Quer dizer que se sentem melhor porque não estão a ser incomodados ou a incomodar o parceiro. Muitas vezes dizem que vão para outro sítio para não incomodar”.

Nem todos mudam logo para outra divisão. Há quem recorra a uma técnica intermédia: estão no mesmo quarto, mas dormem em camas separadas.

Mas antes disso, defende Anselmo Pinto, quando as pessoas percebem que não estão a conseguir dormir por questões relacionadas com saúde devem procurar ajuda profissional e tentar ver se conseguem resolver o problema. No caso do ressonar, apneia ou outro, por exemplo, mesmo que o elemento do casal que tem um distúrbio de sono que incomoda terceiros se afaste, o problema vai manter-se para si. “Pode mudar de cama, de quarto, de casa e de companheiro,” mas o problema de base vai com ele.

É fundamental, diz o especialista, haver “boa vontade” entre os parceiros. “Se o objetivo é dormirmos juntos, se queremos e nos sentimos bem, vamos lutar por isso. Não é desistir logo. Se conseguirmos, ótimo.” Se não, camas separadas pode ser uma opção.

A importância do descanso não deve ser desvalorizada. O sono influencia tudo na vida, alerta o especialista. Desde o crescimento do cabelo à pele, passando pelo bem-estar, emoções e humor. Contribui para o envelhecimento precoce e para mais possibilidades de enfarte, entre outras coisas.

Dormir mal reflete-se em tudo e o relacionamento entre as pessoas não é exceção. “Reflete-se na relação entre o casal, nas relações pessoais, nas relações sexuais, nas emoções, no humor, nas reações.” E isso leva-se para a cama na noite seguinte, com o parceiro que se sente incomodado a antever que vai passar mais uma noite sem pregar o olho.

Também se pode dar o inverso, acrescenta ainda Anselmo Pinto. É que, a qualidade do relacionamento vai para a cama com as pessoas. “Durante o sono estamos desprotegidos e, portanto, se estamos ao lado de alguém de quem não gostamos, com quem já não nos damos bem, pode ser perturbante”, considera, referindo que há pessoas que se queixam de dormir mal e acabam por dizer que há um mal-estar entre o casal. “Quando a relação não está bem, isso influencia o sono.”

Criar outros momentos

O não dormir tem impacto na qualidade de vida, pois “não dormindo bem, tudo o resto está comprometido”, reforça Catarina Lucas. “E isso depois reflete-se naturalmente no relacionamento entre o casal. A má qualidade do sono tem interferência na qualidade do relacionamento, porque estamos menos disponíveis para o outro.” Se ficar na mesma cama compromete o sono de um ou ambos os elementos do casal, faz sentido que, pelo menos, se equacione dormir em camas ou quatros separados. Mas, sublinha a terapeuta, é importante “comunicar” sobre isto. “O que é que isto diz sobre nós, se é que diz alguma coisa. Se estou confortável com isto. Se a minha perceção da relação não se altera com isto. Esta comunicação e reflexão sobre o valor simbólico do dormir junto devem ser feitas”.

Se esse momento de dormirem lado a lado deixar de existir “pode ter impacto no relacionamento”, pois deixa de existir a tal oportunidade natural para conversar, partilhar sonhos e preocupações, para a sexualidade. Por isso, se a solução é dormirem separados, é preciso “criar momentos ao longo do dia para haver conversas, intimidade. Estarem atentos para que estas coisas não se perderem”.