Joel Neto

O último dia


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Esta manhã o Chico varreu as folhas deste jardim pela última vez. Montou e encheu uma cofragem em torno dos pilaretes que acomodaram o corrimão do Artur, e foi a última vez que encheu uma cofragem no nosso quintal. Ligou-me a meio do dia, a avisar que a argamassa ia demorar a secar, pelo que tinha guardado uma hora para voltar, entre a sesta da tarde e a noite na padaria, a tirar as tábuas e a acabar com a esponja. Ainda me interceptou na rua, antes de atravessar a ilha a caminho do trabalho, para me avisar de que a pistola da mangueira do pátio estava estragada, pelo que, para limpar os detritos dos cães, o melhor seria eu trazer a da mangueira das escadas. Depois, mais nada.

Quando arranquei com o carro, senti-me como se o fizesse pela última vez também. Ao fim de década e meia, o Chico decidiu acabar com os biscates. É um homem de 54 anos, com uma profissão nocturna e a vida estável: já devia ter parado há que tempos. Mas gosta de trabalhar. E o que nós aqui fizemos, ao longo destes anos, ele a concretizar e eu a mandar palpites, os dois de mão na massa com o mesmo grau de compromisso, eu enterrado até ao pescoço e ele a distribuir ordens, não se equipara a mais nada em que eu tenha participado. Não há pessoa que entre aqui e não sorria. E nós ainda sabemos uma coisa que ela nunca sabe. Muitas: o que cada planta lutou até vingar, de onde veio cada pedra de cada muro, a mágoa que nos valeu cada quimera de que tivemos de desistir por causa do vento, da chuva, do nevoeiro, do frio, dos sismos.

E talvez seja apenas isso, o que me enche de melancolia: sentir que nada nesse percurso será agora mais do que uma memória. A memória é o alimento de um escritor, mas eu também sou um homem. Não voltaremos a ir recolher pedras aos pastos do Galão, o Chico e eu, para fender e pavimentar os caminhos. Não tornaremos a olhar para o próximo recanto anárquico, e a confabular uma escada ladeada de canteiros de flores, e a passar o resto do Inverno a transformar a paisagem à medida desse devaneio. Nem será ele a ordenar a campa destes cães, nem a apanhar os frutos destas anoneiras, nem a pintar as cancelas por que estas um dia serão substituídas.

Ou então, muito simplesmente, enche-me de pena saber que o Artur não crescerá com o seu exemplo por perto. Tinha-o imaginado a crescer enquanto rabiava por entre as pernas dele – perguntando os nomes das plantas, apascentando caracóis, inventando logradouros com pedras de bagacina. Agora vou ter de lhe ensinar sozinho toda esta ética, e não estou certo de ser capaz.