Valter Hugo Mãe

O poeta move


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Hoje, 18 de fevereiro, completaria 100 anos o poeta Lêdo Ivo, esse que falava de seus mortos e de como jamais cessam de morrer. Mas os poetas são todos uma rebeldia contra a morte e perduram à revelia, corrompem o absoluto, impedem o silêncio e a imobilidade. O Lêdo é movimento. Faz 100 anos de idade e move.

Por absurda alteração do Planeta, continua certa Primavera e a luz celebra. Fomos todos ensinados para o louvor da luz e os dias parecem mesmo andar poéticos, levezinhos como se fossem fantasias, tempo de histórias de encantamento e amorosidade. Uma Primavera permanente, à espera da passarada e dos arraiais que haverão de chegar com a cristandade nas capelas que se enfeitam.

Hoje é dia de Lêdo Ivo e eu imagino Maceió, sua terra, passando gambiarras pelos telhados, acendendo noite fora uma festa que imita flores ardendo em cor. Imagino seus poemas saindo à rua, feitos dos rostos do povo que cantou, e gosto de acreditar que Lêdo vê. Se ele move, ele vê. Gosto de acreditar que há um resto de alma eterno nem que seja apenas para quem soube criar um verso perfeito. Deus tem de existir nem que apenas para aqueles que merecem.

Um amigo mandou do Brasil notícia de que uma criança acordou a meio de uma noite e declamou um poema sem jamais o haver lido. Não se sabe de que poeta, mas dizem seus pais que era claramente um poema famoso, um clássico inteiro que a criança declamou igual a estar recebendo o espírito de algum escritor. A criança, de boca espantada, não entendeu nada e espera que não volte a acontecer. Tem medo.

De outro modo, eu penso que é lindo que um poema dê num inocente sem mais nem menos. Um poema tão importante que aconteça numa boca qualquer, sem aviso, preparado para desarrumar tudo, especialmente a ideia de que não há mais nada. Porque, se a boca do inocente recebe o poema, o poeta haverá de o saber, o poeta move.

Hoje, fico a pensar em como seria se “O barulho do mar” viesse à boca de alguém que nem nunca o tivesse lido nem nunca tivesse sabido de Maceió ou de como são os mortos. Fico a pensar como seria perturbador e fascinante. Eu, que esperei sempre tudo a partir de uma só palavra, adoraria que por toda a parte a poesia regressasse assim. Brotada de bocas sem culpa porque todo o verso é semente deitada ao centro da humanidade. Pode germinar. Lêdo Ivo é feito para germinar.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)