Urbano Tavares Rodrigues
Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.
No passado dia 6 completaram-se cem anos desde o nascimento do nobre Urbano Tavares Rodrigues. Se houvesse um sangue azul para correr nas veias dos escritores, o Urbano seria o puro príncipe, o soberano dúctil e generoso observando a trapalhada do Mundo através de algum ponto no coração. Continuo sem encontrar pares para ele. Raros são os que me parecem ombrear com seu talento e sua humanidade. Urbano segue sendo um valor inteiro, um homem a quem o tempo não descontará nada. Quanto mais o esquecermos mais perderemos. Ele, por seu lado, foi essa integridade, essa inteireza. Não se perde de si mesmo. Está digno na eternidade.
Cem anos de Urbano significam que, ao menos na minha casa, se faz uma festa em torno dos seus livros, que fui podendo coleccionar em edições antigas que acarinho muito. Não costumo ver a biblioteca como necessariamente atazanada com a preciosidade das edições. Sempre me interessam os textos, o tamanho da fonte para que me seja confortável a leitura, mas o Urbano tornou-se um caso delicado, pessoalíssimo, de ternura, e os seus livros saíram em modos tão dispersos e belos que não pude deixar de atentar neles na infinidade de visitas a alfarrabistas. Por estes dias, a “Imitação da felicidade” ou “A estação dourada” vieram às mãos como se fossem modos de cumprimentar o escritor. Modos de lhe dar corpo e celebrar. Sempre releio alguma passagem e agradeço sua importância para a nossa memória, a nossa cultura tão deitada a ser passiva e sem entusiasmo.
É tremenda a falta que nos faz Urbano. A sua atenção aos assuntos do tempo e, sobretudo, a capacidade de ler os mais novos abrindo espaço para que outras gerações cheguem. De entre os mais velhos, hoje ninguém ocupa esse papel. Voltados para suas próprias dores, não há nenhum mestre para a cerimónia de chegada dos novos nomes, que se deixam tão à deriva que parecem não ser bem-vindos. Coisa que se torna insuportável. Falta-nos o Urbano para toda a elegância possível. Para a justeza do companheirismo e para a generosidade.
O Urbano era um iluminista. Não vivia segundo nenhuma convicção de transcendência mas a sua visão do Mundo era toda sagrada. A sacralização da humanidade, como reduto de esperança, fazia o seu gesto. Importava-lhe de verdade o esplendor humano. Essa capacidade de melhorar, de fazer melhor e acreditar que, um dia, todos estaríamos à altura de fazer melhor uns pelos outros. Para os que não acreditam em nada, ou só acreditam em Deus, que é como apostar tudo em algo que nós não somos, a força do Urbano era certamente ingénua. Contudo, era a maior força de todas. Porque se erguia acima dos cépticos e até dos mal-intencionados. Era uma ética que medrava mesmo em condições adversas. Um compromisso que se lhe impunha mesmo na solidão. A sua obra toda o revela. A sua vida inteira mostra o preço que pagou por acreditar numa sociedade mais paritária onde ninguém fosse deixado para trás.
O aniversário do Urbano vai ser sempre uma festa para os que se recusam a descer da esperança. A sua lição ficou clara.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)