Somos mais exigentes e já não temos preguiça de fazer queixa

“A reclamação não tem de ser entendida como um ato agressivo, é um direito que tem de ser exercido, de forma a resolver as coisas da melhor maneira”, reconhece Diogo Martins, jurista da DECO

Os portugueses estão mais exigentes, queixam-se mais, andam atentos à reputação das marcas. E há vários mecanismos para passar das palavras à ação quando alguma coisa corre mal. O processo não é um labirinto sem fim. Denunciar é um direito, é um dever.

Os consumidores portugueses não gostam de ser enganados, já se sabe. Queixam-se muito à mesa do café, muita conversa, mas a verdade é que cada vez menos deixam passar em branco o que corre menos bem no dia a dia. A sociedade muda, hábitos alteram-se, comportamentos modificam-se. Mais compras online, mais queixas online. As pessoas estão cada vez mais exigentes e atentas à reputação das marcas. Tudo isso se reflete na forma como se queixam, reclamam, denunciam. Como passam da teoria à prática.

O nome diz tudo. A DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor recebe e trata reclamações de todo o género, analisa os casos, avalia se há fundamento ou não para avançar para uma queixa formal, aconselha o consumidor, acompanha a parte jurídica se for necessário. Serviço gratuito para associados, 15 euros para não associados. Diogo Martins, jurista do Gabinete de Apoio ao Consumidor da DECO, refere que é fundamental expor a situação por escrito, seja o que for. Oralmente, não conta. “A reclamação não tem de ser entendida como um ato agressivo, é um direito que tem de ser exercido, de forma a resolver as coisas da melhor maneira”, sustenta.

Falar de consumo não é falar de uma questão qualquer. “O consumo é das matérias mais importantes do quotidiano”, constata Ana Isa Meireles, advogada, professora da Escola de Direito da Universidade do Minho, investigadora do Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov). Tudo mexe com tudo. Tudo está interligado. “Em algum momento da nossa vida consumimos: numa máquina vending, numa portagem, num parque de estacionamento, uma compra, uma adesão online. Aliás, basta pensarmos em como comunicamos: são relações de consumo”, afirma.

Quando algo corre mal, há três opções: calar para sempre, falar sem nada fazer, reclamar por escrito no papel ou online. Fala-se muito e faz-se pouco? Ana Isa Meireles não concorda até porque os números mostram mais queixas efetivadas. A questão será a areia na engrenagem, as pedras no caminho? É o desconhecimento, sobretudo. “Entendo é que existe uma falta de conhecimento de como agir, mas, também, das proteções que existem, não porque a informação está distante das pessoas, mas porque as pessoas acabam por entender que perdem mais tempo do que aquilo que podem ganhar, além de que associam sempre a custos”, adianta a advogada.

O Portal da Queixa é uma rede social de consumidores, um site de partilha de experiências de consumo que permite pesquisar, reclamar, comparar marcas. Expõem-se situações desagradáveis, há marcas que reagem, serviços públicos que respondem. “É apenas e só a ponte de comunicação entre marcas e consumidores, não substitui o livro de reclamações”, explica Pedro Lourenço, fundador do Portal da Queixa. Mesmo sem autoridade formal para resolver qualquer conflito, a questão é que o que ali é escrito fica visível aos olhos do Mundo.

Pedro Lourenço chama-lhe “quase um serviço público, totalmente gratuito”. “É um barómetro de reputação de uma marca”, sublinha. Quando a reputação é o principal indicador de confiança de uma marca. “A informação é muito válida e só é possível no Portal da Queixa. Numa era digital, é importante partilhar experiências, alertar marcas para oportunidades de melhoria e resolução de problemas, partilhar informação com todos os consumidores.” “Uma reclamação é uma oportunidade de melhoria”, acrescenta. O Portal da Queixa recebe cerca de 750 reclamações por dia, regista dez milhões de interações por mês. Acaba de atingir um milhão de queixas desde que surgiu, em 2009.

Há várias entidades onde reclamar daquilo que anda entalado na garganta. A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) é uma delas e não é complicado fazê-lo através do site. A reclamação pode ser anónima, esclarece, tem de ser o mais fundamentada e completa possível, com informação detalhada sobre factos e qual a entidade denunciada, com todos os pontos de referência, motivos da denúncia, e outras questões que se entender relevantes. Caso a ASAE não tenha competência para atuar nessa matéria, reencaminha a reclamação para a entidade competente.

Um bollycao com bolor, uma ideia

Diogo Martins chama a atenção para alguns aspetos neste processo: há prazos para reclamar que têm de ser cumpridos; ao reclamar, as entidades reguladoras e fiscalizadoras têm conhecimento das situações; no livro de reclamações são dados 15 dias úteis para os visados responderem – e tem de o fazer obrigatoriamente. E mais um aviso. “Não é por se reclamar que se tem razão.” Mas ao não fazer nada, nada acontece. Para o jurista da DECO, não há nada a temer. E dá mais um conselho para quem quer reclamar. “Não ter vergonha, nem protelar as situações, não ter receio de nos contactar para tentar resolver o problema o mais rapidamente possível.” “A nossa ajuda passa sempre por dizer a verdade”, vinca.

Normalmente, o primeiro passo é utilizar o livro de reclamações, é o básico dos básicos. “Mas isso não ‘efetiva’ direitos, apenas denuncia situações, sem pedidos concretos”, indica Ana Isa Meireles. Uma queixa como deve ser, em seu entender, não pode ficar por aí. “Não entendo que baste, de todo, o livro de reclamações. As pessoas podem e devem interpelar, mandar uma carta a reivindicar os seus direitos.” E não só. “Depois dessa carta, intentar a ação ou a participação para uma ação: seja num tribunal arbitral, seja num tribunal comum. Claro, se for uma situação de seguros, o tribunal arbitral não é o mesmo de ser uma situação de consumo, há tribunais arbitrais específicos para determinadas áreas.”

No Portal da Queixa, a informação é toda pública. Por exemplo, uma reclamação, troca de palavras, o serviço, marca ou empresa respondem, a questão é resolvida, o acesso a tudo isso é total. “Demonstramos essa resolução de uma forma pública”, descreve Pedro Lourenço. Como uma tecnológica, trabalha dados, usa algoritmos. “Coletamos informação que devolvemos à comunidade de consumo.”

E tudo começou depois de um bollycao que Pedro Lourenço comprou para o filho, na altura com quatro anos. Viagem de carro, paragem num hipermercado, compra feita, volta ao hipermercado a dar nota do bollycao cheio de bolor, impróprio para consumo, reclamação tratada, dinheiro devolvido. Nessa viagem, Pedro Lourenço e a mulher, Sónia Lage Lourenço, conversaram sobre o que tinha acabado de acontecer e escavaram mais fundo. O que fazer nesta situação? Como funciona a distribuição? Como são armazenados os produtos? O Portal da Queixa nasce a partir daqui, desta conversa, de uma ideia, em 2009, primeiro como fórum, depois como plataforma. Começa a crescer de forma exponencial em 2018. Hoje está em mais quatro países: Espanha com o Libro de Queijas, França com Réclame Ici, África do Sul com Complaints Book, e mais recentemente Inglaterra com o lançamento da sua marca global Consumers Trust.

Este ano, por ocasião do Dia Mundial dos Direitos do Consumidor, o Portal da Queixa apalpou o pulso à sociedade de consumo através de um inquérito online realizado a um universo de 4570 pessoas. O estudo “O perfil do consumidor atual” mostra consumidores mais digitais, mais exigentes e atentos à reputação das marcas. Um consumidor que reclama mais e vê na forma como uma reclamação é resolvida um novo critério de avaliação de uma marca. Faz sentido reclamar? 50% respondem que sim, 24,8% dizem ser um direito e um dever, 21,2% consideram que reclamar permite alertar outros consumidores. O estudo revela ainda que 33,8% dos consumidores optam pelo livro de reclamações.

E aquela descrença de que uma queixa formal não resolve nada? Ana Isa Meireles acredita que essa ideia ainda persiste. “No entanto, também acredito que enquanto as pessoas não sentirem que devem agir – por questões de justiça – e não desistam de agir (seja, por exemplo, numa simples ‘troca’ de um produto defeituoso, de um ‘sinistro’ não assumido pela companhia de seguros ou numa qualquer questão de compra e venda online), a descrença vai aumentar.” E o custo, diz, não é desculpa. “Porque efetivamente o custo é ultrapassado: há apoio jurídico e os tribunais arbitrais são de custo reduzido.”

Em 2022, o livro de reclamações em papel e eletrónico registou 466 126 situações, com os serviços públicos de comunicações e serviços postais à cabeça do descontentamento. A ASAE, a ANACOM – Autoridade Nacional de Comunicação e a Entidade Reguladora da Saúde foram as entidades que tiveram mais trabalho no tratamento dessas queixas.

Nos primeiros meses deste ano, a DECO Proteste recebeu mais de 43 900 reclamações. O setor das telecomunicações está no top 3, além do peso significativo de queixas relativas aos bancos, à Segurança Social, aos condomínios e arrendamentos.

O Portal da Queixa, plataforma digital de comunicação entre consumidores e marcas, dá conta de mais de 88 300 reclamações no primeiro semestre deste ano, um aumento de 60% em relação ao mesmo período do ano passado. Também aqui, as telecomunicações, os CTT e os serviços públicos essenciais, de luz, água, eletricidade, lideram o descontentamento dos portugueses. E se há insatisfação, é natural que haja queixa.