Sem Eduardo Pitta
Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.
Por um tempo, há pouco mais de 20 anos, estive muito próximo de Eduardo Pitta. Escutava suas ideias sobre a poesia portuguesa, suas histórias sobre os poetas que ele, invariavelmente, conhecera em pessoa. Nas passagens por Lisboa, era comum que almoçássemos na Versailles, sempre na mesma mesa, onde ele tinha um dia marcado para almoçar com o Jorge, num ritual social que prezava e sofisticava.
O Eduardo que conheci era um homem de atenção registadora. Para ele, o país da cultura acontecia-lhe diante dos olhos e importava anotar para que se entendessem os caminhos ínvios até ao aparecimento dos livros. Sabia tudo acerca dos que se amigaram e desamigaram, dos que se casaram ou descasaram. Media as mudanças de rumo por estas gestões, e via como grandes livros, os melhores livros, resultavam depois de fracturas graves, ou ao contrário. Alguns autores destruíam-se na tragédia. Não aproveitavam a tragédia para maturação alguma.
Para mim, ainda jovem e a viver a anos-luz de Lisboa, aceder à visão do Eduardo era, mais do que uma lição de Literatura, encurtar a distância que existe entre leitor e autor. Tantas vezes compadecido com instantes das vidas deste ou daquele, várias foram as pessoas por quem nutri sempre um carinho sincero porque o Eduardo me dizia serem lindas, boa gente, as melhores pessoas do teatro sempre vaidoso dos livros.
Falava-me invariavelmente de Ruy Cinatti, de quem ele fora profundamente amigo e que admirava sem fim. Naquela altura, os seus livros andavam esgotados, não se conseguia comprar nada de muito substancial e havia o sonho de o voltar a disponibilizar enxuto, inteiro, porque era fundamental à Língua Portuguesa.
Pude dizer ao Eduardo Pitta que, embora me fascinassem os bastidores do nosso teatro, minha maneira de o encontrar vinha sempre da sua própria poesia. Eu chegava a ele por um verso, por um poema. Todo o tempo eu lhe cobrava mais poesia, mas ele era como um poeta antigo, alguém que escrevera raro e queria deixar pouco como jóias bravas, perfeitas. Acabou por publicar quase mais nada. Quero dizer, poemas. A sua obra estava feita desde antes e revela algumas das mais belas imagens que alguém escreveu em português. Para mim, este é o poema: “Está um rapaz a arder / em cima do muro, / as mãos apaziguadas. / Arde indiferente à neve que o encharca. // Outros foram capazes / de lhe sabotar o corpo, / archote glaciar. / Nunca ninguém apagou esse lume.”
Morreu o Eduardo Pitta e o seu silêncio nos últimos tempos já significava um empobrecimento insuportável. As suas paixões levavam-no a uma assiduidade assinalável. Lembro de criar um blogue colectivo. Convidei-o e convidei o João Paulo Sousa. Foi este que lhe deu o nome de “Da Literatura”. Com o tempo, apenas o Eduardo ficou a assumir aquele espaço e fê-lo incansável, com brio e rigor. O seu blogue foi, por longos anos, um dos fundamentais na inteligência nacional.
Faltar a voz do Eduardo no comentário dos dias é algo a que jamais me habituarei. Estarei sempre grato pelo que nos trouxe a todos, e maravilhado pelos poemas.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)