Margarida Rebelo Pinto

Sem chão


Quem tem filhos crescidos e criados, acaba por sonhar com netos. É quase involuntário e inevitável: o instinto de reprodução está intimamente ligado ao instinto de sobrevivência. Vinte ou trinta anos depois, já nos esquecemos das noites mal dormidas, das cólicas ao final da tarde, de toda a trabalheira e sacrifícios que fizemos por eles. A memória é seletiva e olhamos para as fotografias antigas com nostalgia e muitas saudades. Existe em nós um lado egoísta que deseja em segredo que os nossos filhos pudessem ser congelados naquelas idades mágicas em que estão sempre contentes a brincar, quando todas as cores e todos os sons são uma permanente descoberta e correm para os nossos braços quanto estão cansados, com medo, ou com mimo, porque somos o mundo deles, e eles o nosso. Quando os seus braços dão a volta ao nosso pescoço, a testa é mole e começam a andar depois a correr, depois a falar, mas são ainda os nossos bebés.

Na Antártida, esse continente misterioso que só conhecemos através de notícias e de documentários, as colónias do pinguim-imperador foram dizimadas pelas alterações climáticas. Por causa do colapso histórico do gelo, cerca de 10 mil crias morreram. Um estudo recente publicado pela revista científica “Communications, Earth and Environment” revelou que as aves terão morrido de afogamento ou congelado até à morte. Desde 2016 que o degelo acelerado afeta esta região. O pinguim-imperador depende do gelo marinho para o seu ciclo de reprodução em plataformas estáveis que estão a diminuir drasticamente com o aquecimento global. Sem elas, ficam sem chão.

É natural que a 15 mil quilómetros de distância não tenhamos espaço mental para nos preocuparmos com os pinguins. Afinal, eles não fazem parte da nossa realidade; vamos vê-los ao Zoo ou ao Oceanário como se fossem bonecos habilmente recuperados por taxidermistas com um chip que os faz saltar, nadar e emitir ruídos engraçados. Os pinguins são cómicos, acasalam para a vida, fazem partidas uns aos outros. Achamos-lhes graça porque são parecidos connosco. Mas como, pensamos nós, a nossa sobrevivência não depende deles, encolhemos os ombros e focamos a atenção em episódios geograficamente ou afetivamente mais próximos. Não queremos saber que o gelo marinho da Antártida este ano encolheu o equivalente ao território da Argentina, o oitavo maior país do Mundo.

Há 50 anos, um rapaz de cabelos encaracolados e com jeito para baladas românticas escreveu uma canção que apelava à proteção das baleias. Quem já tem netos sabe a quem me refiro. Roberto Carlos cantava: Seus netos vão te perguntar em poucos anos/ pelas baleias que cruzavam os Oceanos/ Que eles viram em velhos livros/ ou nos filmes dos arquivos/ dos programas vespertinos de televisão. A quase extinção das baleias pela mão humana foi travada a tempo, mas com o degelo, as baleias têm menos krill para se alimentarem. Como pode a mão humana desacelerar o degelo? A crise climática é um dominó imprevisível que vai criar cenários devastadores em todas as partes do Planeta, a todos os níveis, afetando todas as espécies, incluindo a nossa. Pergunto-me em que Mundo irão viver os nossos netos e assusta-me o futuro que os espera. À semelhança do que acontece agora com o pinguim-imperador, temo que seja um futuro sem chão. Citando a sábia Sophia: “Que difícil é a vida dos homens, eles não têm asas para voar por cima das coisas más”.