Róisín Murphy, do lado certo
Crítica musical, por Jorge Manuel Lopes.
O sexto álbum de Róisín Murphy chegou sob uma nuvem tóxica. Nas vésperas da edição de “Hit parade” (Ninja Tune) foram divulgadas afirmações de uma conta sua numa rede social em que demonstra preocupação pelos efeitos nocivos de medicação supressora da puberdade em menores de idade porventura transexuais – preocupação partilhada por vários organismos públicos e que, no Reino Unido, levou à proibição do uso generalizado destes fármacos. Um comunicado posterior da autora (que não é um pedido de desculpas, porque nada há a desculpar) não evitou o sururu online, os boicotes mediáticos tentados (alguns conseguidos), o cancelamento de ações promocionais pela editora e o silêncio de críticos e jornalistas adeptos da obra da cantora e compositora irlandesa.
A boa notícia é que o barulho e o mutismo censórios não parecem ter afetado de modo irreparável a receção a “Hit parade”. Quem aqui entrar na expectativa de reencontrar pop cubista ou monumentos dançáveis, logo vai perceber que o camaleão Murphy voltou a mudar a mobília, as paredes, a casa. A ex-Moloko cozinhou este material desde a década anterior com o produtor e DJ alemão DJ Koze, especialista em groove envolto em orquestrações sábias e subtis, ideias desenvolvidas com paciência, salpicos de estranheza e sentido lúdico. A parcela maior de “Hit parade” é preenchida com material assim, da soul-funk de sabor retro de “CooCool” à sobriedade adulta da guitarra e violinos em “The universe”. É à quinta faixa, “The house”, que o funk começa a fazer coisas bonitas com o corpo. A seguir, “Free will” pinta um paraíso disco náutico de seis minutos, antes de se descer para um bunker house com “You knew”, escassas luzes pulsando na escuridão, e de se entrar em transe na maratona “Can’t replicate”, com o seu quê de Underworld.
“Hit parade” não escala os picos synthpop efervescentes de “Overpowered” (2007) nem esculpe um monumento às pistas de dança como “Róisín machine” (2020) mas, desconfia-se, revelará camadas de si com o correr do tempo. Mais uma curva surpreendente de uma artista única, um tesouro, com a razão e o coração do lado certo.