Porque somos supersticiosos?

Queremos as superstições para nos sentirmos parte de uma sociedade

No seu dia a dia deve repetir, sem se aperceber, ditos populares que servem de premonição a algo bom ou mau. A ideia das superstições vai muito para lá de acreditarmos (ou não) nelas. São prova de um processo de socialização e de memórias. Mas será que, na era da informação, ainda há lugar para esta mística na vida dos jovens?

Provavelmente já passou por um gato preto, já partiu um espelho, virou um chinelo ao contrário ou alguém varreu os seus pés. Também já deve ter coçado a mão, visto uma ferradura ou, menos provável, pode até ter encontrado um trevo de quatro folhas. Todas estas ações ou acontecimentos estão associados a azar (primeiros) ou a sorte (segundos).

E mais do que discutir se há alguma ciência por detrás destes ditos, é importante questionar: pode até reconhecê-los e replicá-los no seu dia a dia, mas acredita neles? As superstições não são meros marcos na nossa memória, têm uma função. Por isso, vamos espreitar este mundo místico e perceber por que motivo repetimos premonições sobre as quais nunca refletimos.

Antes de argumentar o que quer que seja sobre superstições, José Manuel Curado explica ser imprescindível definirmos, afinal, o que significa esta palavra. O professor do Departamento de Filosofia da Escola de Letras, Artes e Ciências Humanas da Universidade do Minho denota que “superstição” tem origem no latim superstitio, que significa um “medo excessivo dos deuses ou do sobrenatural ou uma crença religiosa irracional”.

Por outras palavras, a superstição está, de uma forma abstrata, acima de religião. Podemos até ser ateus e não acreditar num deus superior, mas certamente repetiremos uma ou várias destas crenças, quer seja de forma consciente ou automática. Este facto desdobra-se em duas questões.

A primeira é que qualquer ser humano, independentemente de crente ou não em determinada religião, segue, no essencial, a vontade de todos os outros: prezar a vida, contornar a morte, procurar amor e querer poder. Este poder referido aqui (e mais adiante no texto) não terá de ser poder no sentido económico ou social, mas antes poder sobre a própria vida. Assim, proferimos superstições para ter alguma segurança de controlo sobre aquilo que nos acontece. A psicóloga Rute Dinis Sousa entrará também por este caminho mais à frente.

Em segundo lugar, a abrangência das superstições acontece também pelo seu caráter social, tendo uma forma para além de si mesmo e sendo parte do papel de socialização que é imprescindível para a vida de qualquer pessoa.

A sabedoria do povo

Ainda na senda das definições, a psicóloga Marta Martins Leite acrescenta que a superstição “conduz geralmente a um cumprimento de falsos sentidos ou transmite confiança em rituais criados pelo povo”. Sendo estes ditos e conhecimentos criados no seio da população, é também aí que se transmitem e replicam. “Por norma estas crenças vão passando de geração em geração e é muito mais fácil viver estas crenças e mantê-las se vivermos num meio mais rural, ou seja, mais familiar.”

Assim, a profissional de psicologia acredita que a vida citadina, cada vez mais presente para um crescente número de pessoas, leva a que estas superstições percam força, principalmente devido à simultânea perda de importância e ligação com a família e com os elementos mais velhos da mesma. “Porque nas grandes cidades, em especial devido à agitação do dia a dia e à falta de momentos de meditação e reunião da família, e também à presença constante de estímulos, quer seja do telemóvel ou da televisão, não há espaço para se falar das crenças de cada um”, resume Marta Leite.

A questão das tecnologias e do acesso cada vez mais facilitado e imediato à informação é, aliás, um dos pesos a considerar nesta balança entre a nossa vida e as superstições. A psicóloga prossegue, constatando que “nunca tivemos uma geração tão ligada a tecnologias como temos hoje em dia”. “Este facto obviamente provocou um desprendimento das relações, da família, dos afetos, dos laços, da convivência.” O completo oposto do que acontece nos meios rurais, portanto.

“As superstições que toda a vida ouvimos vieram dos nossos avós, das nossas tias e tios e dos nossos pais. Mas, hoje em dia, mesmo que alguém o diga lá em casa, os mais jovens estão tão ligados ao telemóvel ou à consola que não vão ouvir, não vão estar presos a estas crenças passadas durante tantos anos por dezenas de gerações.”

A Internet e as crenças

Outra opinião apresenta Rute Dinis de Sousa, diretora do Comprehensive Health Research Centre, unidade de Investigação da NOVA Medical School, em Lisboa. A também psicóloga admite, numa primeira análise, que o acesso à informação pode fazer-nos pensar sermos agora mais racionais, não alinhando com superstições e crenças que não têm qualquer suporte científico.

No entanto, Rute de Sousa descobre aqui uma variável: “É também na Internet que encontramos todo o tipo de crenças. Se eu acredito em algo, por mais disparatado e isolado que possa parecer, é garantido que conseguirei encontrar alguém que pense como eu no meio digital”. Ou seja, se procurarmos confirmar as tradicionais superstições na Internet, provavelmente encontraremos uma pessoa ou um grupo delas que acreditam piamente nelas e que até desenvolvem argumentação para as provar.

E adiciona ainda o fator da informação em excesso – e da chamada era da “desinformação” – para concluir que, com tanto acesso a explicações, acabamos por ficar “sobrecarregados” e por, de alguma forma, nos “fechar” nas nossas crenças pré-adquiridas. Como se estas nos dessem uma espécie de sensação de segurança no meio do mar turbulento que é a Internet e a sua sabedoria “infinita”.

José Manuel Curado, da área da Filosofia e do estudo das religiões, aproveita a era da tecnologia para olhar para o tema de um ângulo diferente. Será que as novas tecnologias levam à mutação, alteração ou acrescento nas superstições? “Seria interessante perceber se atualmente existem crenças populares de azar ou sorte associadas, por exemplo, ao teclado de um computador ou à forma como acedemos à Internet.” Estas e outras, indica o professor da Universidade do Minho, seriam obviamente impossíveis há um século.

Quanto ao estudo das superstições, Curado lamenta que a área não esteja a ser ativamente estudada. “Tivemos o registo de superstições no fim do século passado e há forma de aceder a uma lista delas, no entanto essa listagem não está atualizada.”

A essência imutável

Mas ainda que o professor e investigador admita que, com as novas tecnologias, tenham surgido novas superstições, estas serão apenas variações ou inspiradas nas já existentes, uma vez que, afirma, “a essência do ser humano não é tão mutável, instável e evolutiva como podemos pensar”.

José Manuel Curado avança que, desde o início do registo da escrita, que são as mesmas questões que monopolizam os interesses (e, por consequência, preocupações) do ser humano: morte, vida, amor e poder. Assim, ainda que novas crenças populares possam ter surgido nos últimos anos (um exemplo será “para escrever um bom texto tenho de carregar duas vezes no enter antes de qualquer outra tecla”) associadas a novos elementos da sociedade moderna, estas continuam a envolver estes quatro pilares da essência humana.

Abstraindo-nos da validade científica das superstições, é possível que estas influenciem os nossos comportamentos? A psicóloga Marta Martins Leite acredita que sim. “Se entrar sempre com o pé direito no campo de jogo, a pessoa vai acreditar piamente que se entrar com o pé esquerdo aquele jogo vai ser perdido ou algo de mau irá acontecer. Ou seja, aqui é onde entra a ciência no meio desta questão da superstição.” Como? A crença afeta o nosso comportamento (e até o desfecho do mesmo) no sentido em que estamos a misturar o pensamento positivo e a motivação com crenças populares.

Por outras palavras, se eu não conseguir cumprir um ritual que acredito que é uma espécie de “amuleto da sorte” estarei durante o jogo focado nessa crença de que algo de mau me acontecerá, ao invés de focar todas as minhas energias em concretizar boas jogadas.

Quando é preocupante?

Esta ligação das superstições aos momentos de sorte ou azar, como já referidos anteriormente, e que Rute de Sousa faz questão de reforçar, estão intimamente conectadas ao desejo de controlo dos acontecimentos alheios. “O ser humano, no geral, tem uma má compreensão ou não sabe lidar com aquilo que, à partida, não tem explicação ou que acontece apenas por fortuitidade. Por isso, são criadas as crenças populares, para atribuir uma sensação de segurança e de controlo a algo que, como humanos, nos faz confusão: o aleatório.”

Mas há um momento em que a crença nas superstições deve preocupar? Claro, afirmam as psicólogas Leite e Sousa. “Devem preocupar-nos a partir do momento em que não conseguimos fazer as nossas atividades de vida diárias”, vinca a especialista Marta Martins Leite. Rute Dinis de Sousa, da Nova Medical School, acrescenta que este “limite” deve ser considerado quando os comportamentos de cumprimento das superstições entram na área da compulsão e da obsessão, podendo estar perante problemas de saúde mental que devem ser identificados e acompanhados.

Em resumo (e respondendo à pergunta que dá título a este texto), queremos as superstições para nos sentirmos parte de uma sociedade. Estas são parte do nosso legado cultural e geracional. Inconscientemente, representam a nossa vontade de ter algum controlo sobre a morte e a vida e a sorte e o azar. Mas, atenção, não devem reger os nossos comportamentos, sob pena de nos deixarmos levar pelo gato preto que passou por nós, pela escada que temos de atravessar por debaixo ou por não termos conseguido bater na madeira três vezes depois de termos falado de morte.