Pais que se esquecem de um filho no carro. Não são doentes, não são criminosos

“Na maior parte destas situações, estamos perante um acidente, e não uma omissão intencional que poderia configurar uma situação de negligência”, reconhece Rute Agulhas, psicóloga clínica, terapeuta familiar (Foto: Freepik)

O cérebro entra em piloto automático, aquele modo repetitivo mesmo quando a rotina se altera - o mesmo trajeto, as mesmas regras, os mesmos procedimentos. As consequências podem ser dramáticas para as famílias. E nós, como sociedade, como nos devemos comportar perante estes casos? No limite, pode acontecer a qualquer um.

Um esquecimento sem muita importância, uma fração de segundos, volta-se para trás, abre-se o carro, não há consequências, o filho está bem no banco traseiro, há um ligeiro aperto no coração porque não devia ter acontecido, a cabeça estava noutro lugar e volta ao sítio, a promessa de que não volta a repetir-se, partilhar lá em casa o sucedido, dependerá da disposição. Ou um esquecimento de horas, um filho bebé no carro, não era suposto naquele dia estar naquele veículo, o trânsito, o trabalho, o expediente, estacionar, seguir a rotina. O cérebro liga e desliga, desliga e liga. E o chão desaba, o coração rasga, o desespero elevado ao expoente máximo do inimaginável. Um drama terrível. Esquecer um filho no carro é uma catástrofe que não é suposto acontecer. Mas que, no limite, pode acontecer a todos.

Como é possível os pais esquecerem-se de um filho no carro? “Na maior parte destas situações, estamos perante um acidente, e não uma omissão intencional que poderia configurar uma situação de negligência ou mesmo, no limite (quando a criança falece), de homicídio”, responde Rute Agulhas, psicóloga clínica, terapeuta familiar.

Miguel Bragança, diretor do serviço de psiquiatria do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ), no Porto, nunca teve um caso destes em consulta, vai lendo o que é publicado sobre o assunto e não há muita literatura científica. “Primeiro, é uma coisa rara, estratosfericamente rara. Segundo, a psiquiatria acha, até prova em contrário, que essas pessoas nem são doentes, nem são criminosas”, sublinha. “É um ato involuntário, inconsciente.” Os estudos não encontram um padrão, um perfil tipificado nestes pais, há-os de todo o género, etnia, classe social, nível educacional. Em todo o Mundo.

Miguel Ricou, psicólogo e professor, presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses, lembra que estes esquecimentos são raros de acontecer e só se tornam notícias do conhecimento público quando as consequências são terríveis. “São coisas raras, uma circunstância destas é dramática, e tem muito a ver com as nossas memórias automáticas, o modo piloto automático, não se pensa no que se vai fazer no momento, mas no que se vai fazer a seguir”, refere. O bebé podia ter dado algum sinal de que estava ali e não deu, a criança adormeceu no banco traseiro do automóvel. Não era suposto naquele dia ser aquele pai ou aquela mãe a levar o filho ao infantário. E a rotina segue.

Gestos mecânicos, cabeça formatada, o mesmo caminho de todos os dias, a mesma paisagem, os mesmos procedimentos. Há horas para entrar no emprego, não há muito a pensar. “Por isso, não temos de pensar muito quando conduzimos um carro ou realizamos atividades que são repetitivas e quotidianas. Quando se faz algo que não é habitual e se sai da rotina, existe sempre a possibilidade de o modo de piloto automático ser ativado, levando-nos a fazer algo incorreto ou indesejado”, repara Rute Agulhas.

O quotidiano do século XXI é muito exigente a vários níveis, uma vida multipolar, muitos estímulos acumulados, muitas e constantes demandas do mundo exterior, segundo Miguel Bragança. “As pessoas realizam múltiplas tarefas ao mesmo tempo, conduzir o carro, ouvir as notícias, o trânsito, as ultrapassagens. Se aliarmos o stress crónico e a privação de sono, temos um caldo que põe em risco de entrar em piloto automático, e isso é agravado se a rotina se altera”, considera o psiquiatra do São João. E a memória, essa capacidade extraordinariamente complexa, também falha. “Se a memória centrada provoca erros, a memória desfocada provoca muito mais erros.”

O que acontece ao cérebro para um esquecimento desta dimensão? Pedro Morgado, médico psiquiatra, investigador, professor associado de Psiquiatria e Comunicação Clínica da Escola de Medicina da Universidade do Minho, detalha o que acontece dentro da cabeça. O que acontece não é básico, não é nada simples. “Os processos de tomada de decisão são altamente complexos e são mediados por circuitos cerebrais que atuam de forma paralela, estando sujeitos a múltiplos mecanismos de controlo. Um desses circuitos é responsável pelas decisões habituais, automáticas, e que poupam recursos no nosso dia a dia, enquanto outro circuito é responsável pelas decisões mediadas por objetivos, ou seja, aquelas que exigem alterações aos comportamentos habituais.” A alternância entre estes circuitos é fundamental para decidir bem em cada momento e com a melhor gestão possível dos recursos cerebrais. Pedro Morgado exemplifica. “Se fizermos sempre o mesmo caminho entre casa e o trabalho, o cérebro entra em modo habitual (automático), mas se tivermos de fazer um desvio é preciso ativar os circuitos mediados por objetivos.” O que nem sempre acontece.

Não há muita literatura sobre estes casos porque não é frequente o esquecimento de um filho dentro do carro, porque é complexo analisar esse acontecimento, porque é difícil esmiuçar razões. “Os poucos estudos existentes a respeito destas situações referem existir um padrão nestes pais que se esqueceram da criança no carro, nomeadamente de terem sofrido aquilo a que chamam de um lapso de memória, associado a uma alteração da sua rotina (seja em termos de trajeto ou de horários, por exemplo)”, adianta Rute Agulhas.

A lufa-lufa de todos os dias, agendas sobrecarregadas, a casa, o trabalho, os filhos, os afazeres. Tantas e tão diversas tarefas. Pedro Morgado volta ao cérebro e aos seus circuitos que se alternam, para tomar decisões, e ao que pode ter impacto. “Esta alternância entre sistemas é fortemente influenciada pelo stress crónico, pela ansiedade ou, por exemplo, pela falta de qualidade do sono. Nestas situações, é mais frequente a existência de erros, com maior tendência para perpetuar comportamentos habituais que não respondem às necessidades daquele momento específico”, sustenta. Tudo isso pode levar a que situações de esquecimento aconteçam.

“É importante que a sociedade não embarque em reações sensacionalistas e populistas. Além da criança vítima desta fatalidade, todas as pessoas envolvidas são também vítimas de que precisamos cuidar”, explica Pedro Morgado, psiquiatra
(Foto: AdobeStock)

Miguel Ricou retira a pior carga que pode existir nos ombros de quem se esqueceu. “Não deve ser considerado negligência, independentemente de poder haver exceções (outro tipo de comportamentos associados, consumos). As situações que acontecem, acontecem de forma involuntária, tudo se conjuga para acontecer esta catástrofe”, defende o psicólogo.

A culpa, a raiva, a dor

Miguel Ricou usa essa palavra: catástrofe. “Conjuga-se uma série de fatores que tornam um caso catastrófico.” Quando o resultado é o pior, o psicólogo usa uma analogia, na medida do possível. Tal como não se pensa que os aviões caem, também não se pensa que um pai ou uma mãe se esqueçam de um filho, o ser que mais amam, no carro. “As catástrofes são catástrofes, não se preveem, não se consideram, são imponderáveis”, comenta. E os livros não dizem muito. “Não há muita literatura, são situações muito difíceis de estudar”, acrescenta o psicólogo.

E como ficam os pais depois de tudo isso, de um esquecimento sem consequências, mas que mói a alma, até situações dramáticas (e fatais) que destroem o coração? “Naturalmente, esta situação gera nos pais intensos sentimentos de culpa. Sentem-se maus pais e, quase sempre, este sentimento é potenciado pela reação negativa das pessoas à sua volta, que facilmente apontam um dedo acusatório. Quando esta situação tem um desfecho terrível, com a morte da criança, configura um evento traumático, podendo surgir sintomatologia muito diversa”, realça Rute Agulhas. “Estes pais precisam de ajuda especializada para, com o tempo, poderem elaborar esta vivência traumática”, aconselha a psicóloga clínica.

“Não é negligência, é uma desgraça”, afirma Miguel Bragança. A dor não se apaga em meses, anos, dura para sempre, é eterna. As consequências não desaparecem. “Ficam com uma culpabilidade total e absoluta para o resto da vida, sem remedeio”, frisa.

Segundo Miguel Ricou, um momento desta magnitude é destruidor, avassalador da pior forma possível, a dificuldade de gerir emoções negativas, a tentação de projetar o que aconteceu no outro, o pai na mãe, a mãe no pai. O psicólogo recupera a tradição judaico-cristã e a sua cultura da culpa, a culpa, sempre a culpa. “A verdade é que pode acontecer a qualquer pessoa, é infrequente, mas pode acontecer a qualquer um e é importante percebermos isso.”

Rute Agulhas fala disso também, pode acontecer a qualquer um. “É um tipo de situação que pode acontecer com qualquer pessoa, sendo maior o risco quando estamos sob elevado stress ou com privação de sono”, reforça. E partilha a sua experiência. Quando os seus filhos eram pequenos tinha um ritual. Ao sair do carro, fazia sempre duas perguntas. Deixo alguém no carro? Deixo alguma coisa à vista no carro? Só depois é que se ia embora.

Quando acontece e o resultado é o pior possível o país sabe, há notícias, debates, o assunto volta a ocupar primeiras páginas, telejornais, programas da manhã, comentários, opiniões, conjeturas, extrapolações. Nós, como sociedade, como nos devemos comportar perante acontecimentos tão dramáticos? “Perante um caso destes, é importante que a sociedade não embarque em reações sensacionalistas e populistas. Na verdade, além da criança vítima desta fatalidade, é importante recordar que todas as pessoas envolvidas são também vítimas de que precisamos de cuidar”, salienta o psiquiatra Pedro Morgado. Rute Agulhas expõe o seu ponto de vista. “Enquanto sociedade, é fundamental tentar compreender estas situações e resistir à tentação de, imediatamente, as rotular como fruto de negligência parental. Cada caso é um caso”, vinca. Sim, de facto, mas, apesar de tudo, para Miguel Bragança, a sociedade tem as suas responsabilidades, não olhar como um crime, olhar com condescendência, e pensar. “A sociedade também tem de saber dizer que isto não está bem, não pode passar uma esponja sobre o que aconteceu”, observa.

Há precauções que podem ser tomadas. Rute Agulhas avança com algumas táticas. “Os pais podem adotar algumas estratégias muito simples como, por exemplo, colocar um brinquedo do bebé no banco da frente, funcionando como um lembrete. Podem ainda colocar a carteira ou a mala no banco de trás, o que os obriga a olhar para o banco traseiro antes de saírem do carro.” A tecnologia pode ajudar. “Como forma de prevenção destas situações, alguns carros, aplicações móveis e mesmo cadeirinhas de transporte de crianças dispõem já de mecanismos que alertam os pais para a necessidade de verificarem se, efetivamente, o banco de trás está vazio quando saem do carro”, conclui. Todo o cuidado é pouco. Toda a atenção nunca é de mais.