Valter Hugo Mãe

Os 70 anos de Isabel Lhano


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

As amizades são montanhas-russas, feitas de uma folia com momentos também de desafio, assustadores ou delirantes, nos quais a racionalidade pode pouco. As amizades longas, verdadeiras, passam por épocas, estações que trazem a impressão de Primaveras e Invernos, mudanças, ajustes, memórias de como já fomos, como fomos novos, de outra energia e vontade. Com o tempo, até os sonhos podem ser alterados. Nem todos os sonhos nos continuam a convir. Muito do que esperámos da vida, afinal, era só uma ternura da ingenuidade. Algo que passa.

A minha amizade com a Isabel Lhano é antiga e intrincada. Em certo sentido, já mete mortos e feridos, mas também muita festa, muito riso e muito berro, muito espanto e maravilha. E a Isabel completou 70 anos de idade, ocupou as cidades de Vila do Conde e Póvoa de Varzim com a sua pintura e viu um livro ser editado que antologia a obra e os principais textos que sobre ela se escreveram. De António Ramos Rosa a Joaquim Castro Caldas, Mário Soares ou Paulo Cunha e Silva, muito se disse sobre a pintura da Isabel, que se manteve invariavelmente do lado da beleza, por isso a ocupação leva o título “Império da Beleza”, que é o mesmo que dizer o lado do Bem.

Para a Isabel, a arte tem necessariamente um compromisso ético, social, e não pode ser um exercício de ego. Assisti desde sempre ao dilema pessoalíssimo de temer que algo do que faça pareça uma afirmação prepotente de vaidade e não uma proposta de debate do estado das coisas. Chego a considerar um exagero como policia seus quadros à procura daquilo que lhe pareça ter “a mania”, como se não tivesse direito a sobrepor-se ao que pinta, a figurar no que pinta, a ser exactamente aquilo que pinta. Porque o que pinta são os outros. Debatendo o acontece em seu redor é que sente estar representada, como alguém que é iminentemente colectivo, uma pessoa que se justifica pela pluralidade, pela consciência social e se inibe de comparecer ensimesmada, legitimada por si só.

A enorme mostra do trabalho de Isabel Lhano tem sido feita a vários ritmos, com uma certa trapalhada de datas e afinações de última hora, mas ainda se pode visitar. Alguns núcleos estão a ser desmontados, outros vão prolongar-se. Importa, sobretudo, deixar notícia, e sugerir que se busque o livro, onde o aniversário da Isabel se celebra com o que considerou fundamental. Importante documento da vida e da obra de uma grande pintora, o livro, como a arte, é o que fica. Haverá de testemunhar para sempre o esplendor da sua técnica e a benignidade das suas intenções.

Pela primeira vez, ao menos desde que me lembro, e tenho uma idade já nada pouca, as autarquias de Vila do Conde e Póvoa de Varzim colaboraram francamente para a realização de um mesmo evento cultural. Para quem por aqui vive, isso é apenas reflexo da Natureza, uma vez que se usam indistintamente as duas cidades como se de uma grande urbe se tratasse. Para a política, não tem sido assim. Fico feliz que possa ter sido agora, que possam, finalmente, coincidir poderes capazes de desempenhar uma missão ao encontro do sentimento real dos cidadãos.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)