Joel Neto

Onde toda a gente sabe o teu nome


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

“Cada vez gosto mais das Sanjoaninas”, exultei. “Para o ano saio numa marcha!” Penso que foi numa entrevista à RTP Açores, mas pode ter sido ao “Diário Insular” – a noite foi brava a esse ponto. Cantavam uns tipos mesmo bons, talvez os James, e eu tinha uma Super Bock na mão (oh, não, não foi a única). Até que uma jornalista me esticou um daqueles microfones que, no lugar do logótipo da estação, trazem o de um programa em particular. E, ao escutar-me, o Capareira levou a mão à testa: “Mas tu bebeste assim tanto?!”

Desde então, não houve Primavera em que eu não ouvisse: “É este ano que sais na nossa marcha?”, “Pa pa pa, pa pa pa, mas dançar, nada!”, “Devias ter vergonha”. Suponho que não faltasse quem quisesse ver-me a fazer de Batman, surpreendido pela coreografia em plena calçada, sem saber para onde se deslocou o meu lugar nem como chego lá agora. Mas a verdade é que, algures no início do ano passado, contei esta história à Marta, e ela nem chegou a dar-me resposta. Pegou no telefone, ligou ao pai – “Estás dispensado, vai o Joel” – e virou-se para mim: “Que convites tens?”.

Dizer que acabou por ser uma noite divertida é um modo pardacento de definir aquilo que de facto foi. Saímos na marcha oficial das festas, com canção de Álamo Oliveira e Carlos Alberto Moniz – ainda hoje sou capaz de cantar uma que escreveram na minha adolescência, Angra sabe a pão agora, cheira a branco e cantaria… – e, de caminho, escrevemos a letra para a marcha dos cem anos do SC Lusitânia, com música do Carlos Alberto também. Mas, sobretudo, foi delirante, aquele desfile.

Os dois desfiles, porque a marcha oficial abre o cortejo, com um ar muito composto, e depois fecha-o madrugada alta, a bater palmas e a bebericar das garrafas dos que se alinham pelos passeios. Éramos três, pois a Marta levava o Artur na barriga, vinte semanas dele (ninguém se lembrava de outra mulher que tivesse desfilado grávida naquele grupo). E mais do que isso: enfrentámos todos os rostos, todos os risos e esgares, todos os aplausos, e só nos enganámos uma vez, quando demos por nós – como uma série de outros pares – a bailar a estrofe errada, com certo risco de acidente.

Cheirava a linguiça assada e a algodão doce. Havia cerveja, muita cerveja, e alguns filhos bebiam-na ao pé dos pais, num esforço de moderação de que só se aliviavam ao virar costas (aliviando-os também, aliás). Doutores divertiam-se ao lado de trolhas, católicos ao lado de ateus, brancos ao lado de negros. E nós ali íamos, por entre as fanfarras, dançando um com o outro e com aquela gente toda, de roupas escandalosamente garridas, em favor das alegrias do São João, e das tristezas dos terramotos, e da vontade indómita de um povo que sobreviveu sempre.

Este ano já somos só nós, que o Artur fica a assistir de fora, nos braços da Taia, ou do Nuno, ou do João. Mas tem vindo connosco aos ensaios, instalado no pano que um de nós pendura ao peito. Às vezes adormece, embalado, outras fica ali a ouvir e a apalpar o rosto do que o traz, estudando-o fascinado. A Marta já me tranquilizou: “Estás quase livre, amor. Mais uns anos e vem ele comigo”. Mas nessa altura, lamento muito, ele vai ter de arranjar a sua própria parceira. Como é que uma pessoa fica a assistir no passeio, agora, depois ter experimentado descer a Rua da Sé a dançar?

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)