Valter Hugo Mãe

Ocupar um livro


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Contei que sublinho os livros quando leio. Na verdade, posso sublinhar e rasurar, posso colar algo na página, rasgar, recortar, pintar como se fosse numa folha branca. Tenho bastantes dificuldades de memória. Habituei-me a vida inteira a focar num assunto para conseguir ser consequente, manter os dados em jogo, funcionar. Mas, assim que dou o trabalho por consumado, começo a esquecer. Guardo afectos. Palavras ou frases que me fascinaram ou agrediram. Mas perco os factos. Perco detalhes como datas e pessoas, quem exactamente viajou comigo ou partilhou minha mesa, meu dia.

Intervenciono os livros porque quero criar memória. Quero forçar a capacidade de lembrar. Para lembrar. Sempre me é mais fácil recuperar a ideia sobre a qual fiz um boneco, uma confusão de linhas às cores, um rasgão num canto, onde posso colar um pedaço de cartolina vermelha para me chamar atenção. Depois de ler um livro talvez o destrua para um possível leitor seguinte, mas habituei a ver o livro como íntimo, e a leitura como algo por que temos de lutar com todas as forças, para que ler seja para sempre, por dentro de nossas capacidades cognitivas para sempre. Como uma proteína que opere sem fim.

Por outro lado, é verdade que não me inibo perante aquilo de que não gosto ou me agride. Cubro palavras que me entristecem, páginas que falam sobre mortes que se me tornam insuportáveis, até fotografias aberrantes que nem quero ter dentro de casa. Arranquei a capa de um livro do Desidério Murcho porque me parecia tão tétrica que me tirava toda a serenidade. Nem do outro lado da casa, dentro de um armário fechado, eu me apaziguava com aquele livro, com aquela capa. Gosto de ler Desidério Murcho. Gosto muito. Compro todos os seus livros. Mas não quero ossadas na minha casa, caveiras ou cadáveres, não quero corpos em decomposição, parados numa morte que jamais acaba porque as fotografias são paradas, não chegam nunca ao dia depois.

Encontro muita gente que se retrai diante do livro. Leitores que sentem não ter legitimidade para uma nota, uma marca. Como se o livro fosse um lugar de passagem que não podem poluir. Eu comprendo isso. Era exactamente assim. Nunca me sentia bastante para um livro. Pensava que morreria e minha pequena biblioteca haveria de ser uma herança boa, sincera, para os vindouros. A verdade é que, sem marcas nos livros, quando queria reencontrar uma frase, uma ideia que me atravessara, voltava às páginas em certa cegueira. Tudo era vazio. Vazio de mim. Um lugar vazio onde eu estivera mas de onde parecia ter saído em absoluto. O livro, indiferente, era desocupado.

Ocupar um livro passou a ser fundamental. Tanto mais que até me parece maior fortuna que os vindouros possam encontrar nossas bibliotecas carregadas de leituras anotadas, de nossas presenças, como se encontrassem o autor e o leitor prévio. Como se encontrassem outra personagem que atravessa o livro numa narrativa paralela. Tudo me soa a uma mais-valia. Gosto muito quando compro nos alfarrabistas exemplares que me chegam assinados e dedicados, com indicações de temperamento e ciência que alguém decidiu fazer. Sem mais do que isso, só isso já é contra a morte. Tudo quanto seja contra a morte me faz simpatia.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)