Valter Hugo Mãe

O Papa


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Julgo que todos, católicos ou não, temos por Francisco uma especial atenção. O modo como introduz na Igreja recente um decoro de certa humildade e despojamento, ainda que nada radical nem definitivo, sobretudo um aroma, é um sinal profundamente simpático que a cúpula da instituição não tem sabido defender.

Francisco, desde logo escolhendo bravamente este nome, é o mais frontal dos Papas, no sentido em que escolhe ficar exposto ao terrível dos assuntos mais do que os escamotear. Isso, na posição que ocupa, corresponde a enfrentar mil dragões e mais um milhão de arqueiros.

Cresci na vigência de João Paulo II, que era todo simpatias e até bastante amigo de Portugal, ou de Fátima. Mas conivente com o estatuto de luxo da sua figura, persistindo numa representação opulenta que acabou por deixar uma impressão postiça, demasiado próxima do sonso político que me parece não poder caber a uma pessoa espiritual.

A Igreja avança aos nicos, ao menos no que respeita ao que assume publicamente. Por dentro, claro que há muito que os padres se emanciparam nos amores e nas alegrias. De qualquer modo, como máquina simbólica, move-se muito pouco e procura convencer a multidão daquilo que apregoa, mais do que daquilo em que acredita. Este impasse parece-me devastador. Hoje, só não sabe mais quem não observa.

Parece-me que o grande desafio da Igreja agora é fazer corresponder o que pratica ao que legisla. Porque não se pode querer aplicar uma lei com dois mil anos a uma humanidade cada vez mais liberta de temores instrumentais. Temores perversos que se inventaram para estruturar sociedades segundo interesses machistas e de castas dominantes.

Que o Papa venha a Portugal, sobretudo este, considero bonito. Lamento que tudo se tenha passado para peregrino e que os portugueses tenham sido enxotados o mais possível. Solicitados a não aparecerem, abdicarem de chegar a Lisboa, de estar em Lisboa, de trabalhar em Lisboa, comer um pastel, apanhar o metro. Com o Papa presente, tudo é para peregrino. Enquanto cidadão, senti-me absolutamente excluído. Qualquer hipótese de me abeirar foi sujeita à mais veemente desmotivação.

Defendo uma espiritualidade à altura dos gestos. Quero dizer. Aquilo que se defende tem de ser aquilo que se faz. E espero sempre que um Papa, desde logo como Francisco poderá querer ser, tem de agir exactamente de acordo com o que se espera: comprometido com os pobres, agindo pelos oprimidos, pelos enfermos, pelos excluídos. Infelizmente, fico com a sensação de que o sistema captura Francisco. Mais do que lhe permitir cumprir sua própria fé, coloca-o ao serviço de outros poderes. Poderes que não hesitam na esperancinha cândida de comprarem o Céu com o aparato beato que criaram na Terra.

Que bom que Francisco veio. Melhor seria se vir aqui fosse uma normalidade que não sacrificasse nada nem ninguém. Que trouxesse apenas inspiração e calma. Tumulto nenhum.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)