O meu objeto: o cesto de vime de Lídia Jorge

Lídia Jorge está nomeada para os prémios literários franceses Femina e Médicis com o romance “Misericórdia”, obra que venceu o Grande Prémio de Romance e Novela, da Associação Portuguesa de Escritores

O objeto escolhido pela escritora Lídia Jorge.

“Houve um tempo em que a São Salvado, grande amiga, me oferecia cerejas do Fundão. Certa vez, porém, a caixa de frutos vermelhos não vinha só. A acompanhá-la estava um cesto de vime com flores de estopa, cor de terra. As flores tinham o formato de rosa, artesanato muito bem feito, as pétalas de pano grosso muito bem enroladas, o invólucro da mesma cor. Coloquei o cesto sobre a mesa e esqueci-me que existiam. Mas certo dia um amigo veio visitar-me e desafiou-me dizendo que as minhas flores condiziam com o ar do tempo, que os cravos tinham passado a rosas, e os cravos, se os havia ainda, andavam desbotados, como aquelas flores de estopa. Segundo ele, o que eu tinha sobre a minha mesa de trabalho era o símbolo de um tempo de decadência. Estávamos em 2013, o FMI tinha colocado as garras sobre a economia portuguesa, outros diziam que nos tinha vindo salvar da bancarrota. Havia quem amaldiçoasse o tempo da Revolução, achando que essa mudança tinha sido causa não de melhoria mas de desventura. Escutei atentamente. Mas respondi que, apesar de ter flores pálidas sobre a mesa, a minha alma era de outra cor, e que estava a escrever exatamente sobre isso. O meu amigo olhou para a mesa e soletrou um título – “Os Memoráveis”. E o cesto pálido incendiou-se de todas as cores.”

Escritora
77 anos